Por: CARLOS REIS, jornalista
A difusão da criminalidade africana, fundada em tráficos ilegais, assumiu grandeza global. As máfias do continente criaram organizações logísticas complexas para o comércio fraudulento de seres humanos, armas, drogas e recursos naturais. Estes grupos estão a transformar as fraquezas dos Estados nas suas próprias forças.
O
continente africano, uma das zonas do globo mais instáveis e pobres,
reúne um conjunto de Estados na sua maioria frágeis ou até mesmo
próximos da falência institucional. O índice «Human Development Report
2007/2008» do UNDP, programa das Nações Unidas para o desenvolvimento,
classifica como países mais pobres do mundo a Serra Leoa, Burquina-Faso,
Guiné-Bissau, Níger, Mali, Moçambique, República Centro-Africana e
Chade. São Estados em que o poder central não desempenha as suas funções
provocando um vazio que leva à debilidade das instituições nacionais,
afecta a autoridade dos organismos de soberania e contribui para que os
serviços públicos não funcionem e as infra-estruturas básicas não se
desenvolvam ou se encontrem arruinadas.
Muitos
dos Estados africanos garantem deficientemente a segurança aos
cidadãos, uma vez que as forças armadas e as polícias se encontram
sobredimensionadas, mal equipadas e sem recursos, e constituem
frequentemente um factor de instabilidade ao fugirem ao controlo
político, o que permite que regiões de numerosos países africanos sejam
controladas por milícias e grupos armados. Quando existem conflitos, a
autoridade sobre os territórios torna-se ainda mais difícil de exercer
propiciando actividades ilegais, desde a extorsão de dinheiro às
populações em troca de segurança aos entraves à circulação e trocas
comerciais.
Neste
contexto, torna-se fácil garantir que agentes de autoridade nas
fronteiras assegurem que determinados passageiros e bagagens não sejam
revistados ou assegurar a aterragem de aviões e atracagem de navios para
cargas e descargas de pessoas e mercadorias num fluxo de tráficos
ilegais. Continuadamente, os grupos armados dedicam-se ao contrabando de
recursos naturais, armas, drogas e pessoas, numa traficância facilitada
pelos débeis controlos fronteiriços. Com as actividades terrestres e
marítimas a serem deficientemente fiscalizadas, as transacções ilícitas
estão a tornar-se uma crescente ameaça à estabilidade regional e
internacional. As estruturas de soberania de numerosos Estados africanos
estão a tornar-se assim vulneráveis à expansão do tráfico protagonizado
por grupos internacionais de criminalidade organizada. «É uma ameaça
que precisa de ser enfrentada rapidamente para conter o crime
organizado, a lavagem de dinheiro e a corrupção, e para prevenir o
alastramento do uso de drogas no continente africano. Isso pode gerar
turbulências sociais em países que já enfrentam tantas outras
tragédias», alerta o italiano Antonio Costa, director do UNODC, escritório das Nações Unidas contra drogas e crimes.
Contrabandos
Os
países de África estão a registar um forte aumento no tráfico de drogas
devido principalmente ao crescimento do fluxo de substância narcóticas
entre o continente e a América Latina, assegura o director executivo dos
serviços policiais da Interpol, organização internacional da polícia
criminal. «A África Ocidental converteu-se num dos pontos de trânsito
preferidos dos traficantes que levam a droga da América Latina para a
Europa», alerta Jean-Michel Louboutin. «As amplas e pouco vigiadas
fronteiras da maioria dos países africanos, unidas à falta de recursos
tornam quase impossíveis os reforços efectivos em todos os potenciais
pontos de entrada e saída», confirma Saidi Mwema, inspector-geral da
polícia da Tanzânia.
De
um lado há o crime organizado de grandes grupos estruturados, que
costumam ser duradouros, muitas vezes equiparados às corporações
transnacionais. Mas também há associações pequenas, flexíveis e
transitórias. Os heterogéneos grupos do crime organizado caracterizam-se
por se estruturarem de forma dinâmica. Segundo as análises do UNODC, há
pelo menos cinco modos que indicam como está organizado o tráfico de
drogas numa região ou numa rota: a proporção de apreensões totais que
são grandes volumes (indicam acções mais caras, arriscadas e
estruturadas), a diversidade de técnicas e rotas utilizadas (mais
organização), a nacionalidade dos que são presos em conexão com as
apreensões de drogas (mais cidadãos do país em que ocorreu a apreensão
mostra, em geral, estruturas de organização menos sólida), diferenças
regionais no preço e volatilidade nos países produtores de droga e os
níveis de consumo nos países de trânsito que fazem parte das rotas do
tráfico.
Desde
o domínio quase total dos cartéis colombianos de Cali e Medellín nas
décadas de 1980 e 90, o tráfico tem-se convertido e é hoje menos
concentrado, mas mais ágil e disperso. No lugar dos cartéis surgiram
diversos grupos menores, de mais baixo perfil, os «baby cartels», que
existem às centenas. Os chefes deste tráfico são as máfias nigerianas,
que estendem seus tentáculos a pelo menos 80 países em todo o mundo.
A
conselheira regional do UNODC apela à união de esforços dos países
lusófonos para evitar que a costa ocidental da África se torne «um ponto
de fluxo livre para a droga». Segundo a brasileira Sandra Valle, a
costa ocidental africana está a transformar-se num importante lugar de
tráfico, tanto para as rotas de cocaína, quando para as de armas. Por
esse motivo, julga fundamental que os membros da CPLP, comunidade de
países de língua portuguesa, unam esforços para combater o problema. «A
criminalidade extravasa as fronteiras dos Estados. É fundamental não
deixar que a impunidade prevaleça na região e que aqueles mares se
tornem ponto de fluxo livre para a droga.» Para se combater eficazmente o
tráfico de droga e garantir que os traficantes são julgados pelos seus
crimes é necessário estabelecer confiança entre as autoridades dos
diferentes países para que exista uma cooperação contínua e efectiva no
combate aos tráficos. «Só quando se tem um processo bem instruído é que
se consegue uma sentença significativa com uma condenação forte para
proibir e demonstrar que África não é um continente onde se pode
traficar livremente», preconiza Sandra Valle. Neste sentido, a
responsável das Nações Unidas sublinha que a Guiné-Bissau é um dos
Estados que precisa «de muita ajuda», lembrando que o país «nem sequer
dispõe de um sistema prisional». A criminalidade transfronteiriça exige
um esforço global conjunto e o reforço da cooperação no domínio jurídico
e judiciário para enfrentar estes tráficos ilegais. A cooperação
policial e legislativa deve concretizar-se através de instrumentos
internacionais e regras uniformes e ratificação de convenções
internacionais.
Candongas
O
tráfico de seres humanos é o mais recente «business» das redes
criminosas que actuam na África Ocidental. As rotas do tráfico de
pessoas envolvem o Benim, Costa do Marfim, Gabão, Gana, Mali, Nigéria,
Togo, Camarões, Burquina-Faso, Guiné e Níger. São os grupos criminosos
nigerianos que administram o tráfico de seres humanos. Esta máfia é
capaz de actuar não somente na África Ocidental, mas também na África do
Sul e na Europa, onde criaram uma organização logística complexa. Os
traficantes ganham de 10 a 20 mil dólares por criança e de 12 a
50 mil dólares por cada mulher vítima do tráfico. As mulheres podem ir
para o mercado da prostituição na Europa e as crianças serem enviadas
para plantações locais. A OIT, agência das Nações Unidas para o
trabalho, estima que, a cada ano, 250 mil crianças são vítimas do
tráfico no âmbito da África Ocidental.
Segundo
o Parlamento Europeu, até o futebol está a ser usado como mecanismo
para o tráfico de seres humanos para a União Europeia e tem como vítimas
jovens pobres de África, atraídos por promessas de contratos
milionários. A denúncia é baseada em informações da associação Culture
Foot Solidaire. «Esses falsos agentes oferecem-se para providenciar
transporte e contratos na Europa a adolescentes que crêem que poderão
ter bons resultados no futebol europeu e serem vendidos a algum clube
por uma boa soma de dinheiro», explica Jean-Claude Mbvoumin,
representante da associação. «Muitas equipas europeias admitem receber
frequentemente ofertas de traficantes que tentam vender, como se fossem
mercadorias, adolescentes de 13, 14 anos.» Para burlar as regras da
FIFA, federação internacional das associações de futebol, os agentes
mentem sobre a idade do jogador nos documentos oficiais.
Metade
dos países africanos encara o tráfico de seres humanos como um problema
grave, especialmente no que diz respeito às mulheres e às crianças,
revela um relatório do Innocenti Research Centre, centro de investigação
da UNICEF. Não existem estimativas fiáveis sobre o verdadeiro número de
vítimas do tráfico, mas o número de países que reportam tráfico de
crianças é o dobro dos que reportam tráfico de mulheres. «Para pôr fim a
este negócio escandaloso, precisamos de dirigentes corajosos que
criminalizem o tráfico de crianças em todas as suas formas», alerta
Carol Bellamy, directora executiva da UNICEF. Em 34 por cento dos países
africanos, o tráfico tem como destino a Europa e em 26 por cento o
Médio Oriente e países árabes. As causas do tráfico são muito variadas e
diferem de país para país, com o tráfico a ocorrer quando o ambiente
que protege a criança entra em colapso devido a factores como conflitos,
dificuldades económicas ou práticas discriminatórias. Algumas atitudes e
práticas tradicionais como o casamento precoce e a falta de registo de
nascimento aumentam ainda mais a vulnerabilidade das crianças e das
mulheres. A pobreza pode criar uma situação de desespero para muitas
mulheres e crianças, tornando-as alvos fáceis para a manipulação. Outros
factores importantes são a exploração sexual e económica, nomeadamente a
procura por mão-de-obra barata para trabalho doméstico e agrícola. A
procura de crianças-soldados no quadro de conflitos, a procura para
adopção ilegal e o tráfico de órgãos têm também algum peso e devem ser
objecto de mais investigação, afirma o estudo da UNICEF.
Muambas
Um
outro comércio ilegal em África, o tráfico de armas, desenvolveu-se nos
anos 1990 para alimentar as guerras na Serra Leoa e na Libéria, e está
novamente em crescimento. O
fim dos conflitos nestes dois países e a recente crise na Costa do
Marfim fez que surgisse um fluxo de armas de países vizinhos da Costa do
Marfim. Os ex-combatentes estão a ceder as suas armas aos criminosos
locais. Segundo estimativas das Nações Unidas, apenas na Libéria estão
em circulação de 80 mil a 100 mil armas ligeiras. Criou-se, assim, um
mercado de velhos armamentos presentes há tempos na região, que favorece
a instabilidade e o crime.
Outras
mercadorias tratadas pelas organizações criminosas são os diamantes, a
madeira e os cigarros de contrabando, o petróleo do Delta do Níger e até
a borracha das plantações liberianas. Estes verdadeiros furtos de
recursos africanos pressupõem cumplicidades internacionais que vão além
do continente africano. É urgente promover instrumentos jurídicos
internacionais, promover a autenticação de proveniência das
matérias-primas africanas e o combate à corrupção e reciclagem de
dinheiro sujo, para que os recursos do continente sejam utilizados no
desenvolvimento das populações africanas
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