Fatumata Djau Baldé, Presidente do Comité Nacional para
o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da
Criança, denuncia mutilação genital feminina
Há 200 milhões de
mulheres mutiladas genitalmente no mundo. A ONU alerta: poderão ser
sujeitas à mutilação genital feminina (MGF) mais 15 milhões até 2030.
Fatumata Djau Baldé, vítima desta prática em criança, preside ao Comité
Nacional Para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da
Mulher e da Criança, organização guineense que se juntou à campanha O
Direito a Viver Sem Mutilação Genital Feminina. Esta campanha está em
curso durante o verão nos aeroportos portugueses e procura evitar que as
meninas sejam levadas para África e submetidas à excisão. Fatumata
conhece a realidade das diferentes etnias guineenses, incluindo as
residentes em Portugal.
Tem vindo a Portugal com alguma
frequência e aproveita para se reunir com algumas das comunidades
guineenses cá residentes. Como é que estas comunidades se posicionam em
relação à prática da MGF?
Apesar de viverem na Europa,
muitas mulheres destas comunidades comportam-se como se estivessem nos
países de origem. Isto também está relacionado com a forma como chegaram
a Portugal e ainda hoje vivem um pouco fechadas em certos bairros.
Foram educadas para preservar as tradições e a cultura. Então, estando
num sitio em que se fala em banir certas práticas, em mudar certos
comportamentos, elas têm medo de ser vistas como mulheres que estão “a
descobrir o mato”.
O que significa isso?
Nós, na nossa linguagem, dizemos que as mulheres excisadas foram
ensinadas a “cobrir o mato”. Ou seja, que tudo o que viram, tudo o que
viveram durante o período em que estiveram no “mato”, tem de ficar para
trás e ser esquecido. Não é para ser falado, porque se o fizerem estão a
violar um dos mais sagrados princípios da sua tradição e cultura. Vivem
cá como viviam nas tabancas [aldeias] africanas onde não chega nenhuma
informação, em que não se sonha sequer falar no direito da mulher,
quanto mais falar de abandonar uma prática que faz parte da sua
identidade cultural.
Quando fala das comunidades praticantes de MGF a viver em Portugal, não estamos só a falar de imigrantes da Guiné-Bissau...
É sabido que a prática da MGF na Guiné-Bissau atinge 44% das mulheres
com idades compreendidas entre os 15 e os 49 anos, bem como 30% das
meninas até aos 14 anos [dados do MICS 2014]. Sendo Portugal o país com o
maior número de imigrantes da Guiné-Bissau, é de concluir que as nossas
comunidades quando vieram para cá trouxeram as tradições do seu povo,
incluindo a prática da MGF. Mas, em Portugal, também há mulheres da
Guiné-Conacri, que é um país onde a prática não se restringe apenas à
comunidade islamizada. Em Conacri, basta nascer mulher para ter de ser
excisada. Cá residem ainda mulheres de outros países onde se pratica a
MGF, como é o caso do Senegal, do Egito e da Somália.
A MGF também é praticada em Portugal no seio dessas comunidades?
É uma prática que existe em cerca de 50 países do mundo, com maior
incidência no continente africano. Mas também existe nos países da
diáspora africana. Sabemos de casos que nos indicam que, antes de 2010,
praticava-se a MGF em Portugal. Chegava-se a trazer fanatecas [mulheres
que executam a excisão] da Guiné-Bissau para virem cá mutilar as
meninas. Mas, desde 2010, quando se começou a falar mais na luta contra a
excisão, os guineenses começaram a ‘fugir’ da Europa para praticar a
MGF em África. Acham que é mais fácil esconder-se e praticar a MGF numa
tabanca longínqua.
Como se pode intervir?
Tanto em Portugal, como nos outros países, tem de se ir às comunidades
praticantes, tem de se encontrar pessoas nestas comunidades que sejam
sensíveis ao abandono da MGF. No caso das comunidades da Guiné-Bissau,
como a prática está associada ao Corão, tem de se identificar dentro da
comunidade os líderes religiosos que, conhecendo o livro sagrado, saibam
que a MGF não é uma recomendação corânica. O problema é que alguns imãs
não sabem falar, nem interpretar o árabe… Logo, não entendem o Corão.
Onde encontrou as maiores resistências em Portugal?
Na linha de Sintra, as mesquitas lideradas por guineenses de Conacri
são muito resistentes. Alguns imãs levantaram-se e abandonaram os
encontros...
O que é exatamente a MGF? Há vários tipos de excisão...
A MGF é todo o tipo de intervenção que se faça no órgão genital externo
da mulher por qualquer razão tradicional ou cultural, sem que haja uma
justificação médica. A Organização Mundial de Saúde (OMS) identifica
quatro tipos diferentes, desde o corte parcial ou total dos órgãos
genitais externos da mulher até outras intervenções como a punção ou a
queimadura.
Quais são os mitos em causa?
A
questão da educação é primordial para combater esta prática. Há a ideia
de que uma menina que não seja submetida à pratica não reúne condições
para casar, que é o mais importante nestas comunidades. Existem mitos de
que se não for submetida à prática, não pode ter filhos, não consegue
dar prazer ao marido, é uma mulher suja. E a ligação que se faz com o
Corão é que, não sendo mutilada, não é pura para praticar a religião
islâmica e não pode preparar comida para pessoas puras, sobretudo no
período do Ramadão.
Mas as consequências desta prática são vastas...
... e variam ao longo do tempo de vida. Primeiro, há a dor, as
hemorragias, as infeções. Num dos tipos de MGF, em que a abertura
vaginal é tapada, no dia do casamento, a pessoa é cortada com uma faca
que vai ao lume e tem de ter relações no próprio dia. Imagine a dor...
Os traumas são imensos... A pessoa nunca consegue ter prazer no ato
sexual.
A taxa de mortalidade materno-infantil da
Guiné-Bissau é uma das mais elevadas do mundo. Há alguma relação entre
essa realidade e a prática da MGF?
Obviamente. A taxa de
mortalidade é mais elevada nas zonas onde se pratica a MGF, tal como os
níveis de HIV são mais elevados... A faca que corta é, muitas vezes, a
mesma utilizada noutras mulheres! Tudo depende da forma como a pessoa
foi submetida à prática e teve acompanhamento durante a gravidez e,
claro, o parto. Temos, por exemplo, muitos casos de fístula na
Guiné-Bissau. São mulheres que, após o parto, não controlam a urina ou
as fezes, acabando estigmatizadas e abandonadas. A fístula pode ser uma
das consequências da MGF.
O Comité foi fundado em 1995. Em mais de 20 anos de trabalho, quais são as maiores conquistas?
Podermos falar sobre a MGF em todos os sítios, até mesmo nas mesquitas.
Outra grande vitoria é que esta prática já é considerada crime público
na Guiné-Bissau desde 2011. As pessoas podem denunciar esses casos. Os
técnicos de saúde estão a ser formados para lidar com isto, pois muitos
não sabiam identificar casos de mutilação. Nas escolas, está-se a
preparar um módulo sobre MGF para introduzir no currículo escolar. Temos
feito sensibilização das comunidades, contando também com o apoio do
professor Malam Djassi, líder religioso muçulmano com grande influência.
Em 2013, mais de 200 imãs de todo o país, produziram uma fatwa, decreto
islâmico, a condenar a prática da MGF em nome da religião. As
ex-fanatecas com que hoje trabalhamos têm uma grande influência para
mudar esta mentalidade. Os panfletos nas comunidades não funcionam...
Quem sabe ler nas tabancas?
Quantas tabancas já foram abrangidas pelo Comité?
Já atingimos mais de 500 tabancas. Mas na Guiné-Bissau estima-se que existam mais de duas mil. Ainda temos muito por fazer.
terça-feira, 2 de agosto de 2016
Home »
» "NA GUINÉ-BISSAU 30 % DAS MENINAS ATÉ AOS 14 ANOS SOFREM A EXCISÃO"
0 comentários:
Enviar um comentário