O líder do Partido Africano da Independência da
Guiné e Cabo Verde (PAIGC), Domingos Simões Pereira, revelou que o
mediador da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental
(CEDEAO) está preparado para convidar o presidente da Assembleia
Nacional Popular (ANP), Cipriano Cassamá, acompanhado dos líderes das
bancadas parlamentares, para que divulgue o conteúdo do relatório da
reunião das negociações de Conakry.
Simões
Pereira falava numa entrevista exclusiva para a rúbrica "Grande
Entrevista" do semanário O Democrata, sobre a actual crise política,
sobretudo no concernente à implementação do Acordo de Conakry'' bem como
das divergências internas no PAIGC e da questão do regresso do grupo
dos 15 deputados expulsos das fileiras do partido.
Para
o presidente do partido libertador, a questão dos 15 deputados
dissidentes é uma falsa questão. Explicou ainda que "Os quinze acabaram
por ser a solução que o Presidente da República encontrou para
justificar a oposição que quis propor contra o meu governo. Ele tentou
muita coisa. Começou por dizer que a unanimidade mata a democracia,
invocando que não era normal o PAIGC ter o entendimento que tinha com o
PRS"
O Democrata (OD): O partido, através da
resolução do Comité Central, fez saber que não participaria no governo
de Umaro Sissoco Embaló e que nem permitiria que os seus dirigentes
fizessem parte do mesmo. Qual é a estratégia do partido neste momento,
sobretudo se ficar fora do governo liderado por Umaro Sissoco?
Domingos
Simões Pereira (DSP): Aqui não se coloca uma questão de estratégia,
coloca-se sim uma questão de coerência. Penso que o PAIGC é um partido
idóneo, maduro e responsável. Os partidos são associações políticas que
têm que dizer ao povo que podem contar com uma visão séria, ou melhor,
uma postura de responsabilidade em relação as suas obrigações.
A
Constituição da República da Guiné-Bissau tem sido vilipendiada ou
esfrangalhada nesta legislatura. Nós entendemos que temos a
responsabilidade de encontrar soluções que permitam viabilizar a actual
legislatura, até a clarificação de determinados dispositivos legais.
Fomos
à Conakry com um sentimento de responsabilidade, participámos nas
negociações esperando contribuir para ultrapassarmos esta situação. Tal
como havíamos feito em Setembro de 2015, quando o Supremo Tribunal de
Justiça aprovou um Acórdão favorável àquilo que era a revindicação do
PAIGC. Fizemos uma cedência, dissemos apesar de o Supremo Tribunal nos
dar razão, nós compreenderemos se o Presidente diz que não tem condições
para trabalhar com A, B OU C.
Agora fomos a
Conakry e fizemos as cedências possíveis para encontrarmos uma solução. E
quando se chega a uma solução e se assina um acordo, esse acordo é lei
para as partes. Nós não podemos aceitar que, de regresso a Bissau, haja
um conjunto de peças de teatro que vão no sentido de descredibilizar e
fazer tabua rasa daquilo que aconteceu para voltar a dar ao Presidente
da República o direito de decidir tal como ele quer.
Hoje
muita gente pode continuar a pensar que o problema é Domingos ou o
problema é o PAIGC. Eu não tenho dúvidas nenhumas, até porque as
circunstâncias nos permitem lembrar o Comandante Fidel Castro que dizia:
A história vai nos absolver. Eu digo a história vai fazer-nos justiça.
Porque não estamos a lutar por uma questão de lugares, uma questão de
entrar para o governo ou de poder beneficiar disto ou aquilo. Não é
isso.
Nós estamos na política porque
acreditamos num ideal. Nós temos um propósito e o nosso propósito é
afirmar um Estado de direito democrático e não pode ser porque eu gosto,
porque eu não gosto. Será porque é assim, porque assim é que está
certo. Quando há uma entidade que pensa que pode reclamar para si todas
as competências e todas as responsabilidades, então estamos a pôr em
causa o fundamento da existência do nosso Estado democrático e,
portanto, isto devia interpelar a todos. Por isso é que nós dissemos um
acordo é um acordo, quando é visto no seu todo.
Se
um dos pontos do acordo é violado, então deixamos de ter o acordo. O
Presidente da República vai usar as prerrogativas que pensa que tem e
vai tentar implantar suas ideias. Nós no exclusivo e absoluto respeito
pela ordem democrática, vamos fazer o uso daquilo que são competências
que nos são reservadas. O que nós não queremos é que, perante esta
deriva constitucional e democrática, sejamos parte desse jogo.
OD:
O PAIGC defende a legalidade constitucional, mas há quem critique o
partido (PAIGC) por ter assinado o Acordo de Conakry, que não leva em
conta ou que menospreza a Constituição da República da Guiné-Bissau.
Quer fazer um comentário sobre isso?
DSP: Quem
acha que nós devíamos ser intransigentes no respeito pelos dispositivos
constitucionais, devia ajudar-nos a responder àqueles que acham
exactamente o contrário...penso que nós, durante todo este processo,
tentamos realmente colocar a Constituição, as leis e os princípios
democráticos em primeiro lugar. Contudo, há sempre um limite a partir do
qual devemos demostrar alguma flexibilidade, por exemplo, nós chegamos à
Conakry e durante três dias mantivemos sempre a nossa posição.
Ao
quarto dia compreendemos que se saíssemos de Conakry sem um acordo,
famos ser responsabilizados por não o termos facilitado. Sabíamos que,
ao termos que escolher um dentre três nomes apresentados pelo Presidente
da República, estariamos a violar a nossa constituição. Nada dá ao
Presidente da República o direito de ser ele, a propor os nomes para nós
escolhermos. Mas a partir do momento em que nós aceitamos ir à Conakry,
aceitamos a mediação.
Compreendemos que se
saíssemos de Conakry sem escolher um nome, isso seria entendido como uma
intransigência da parte do PAIGC, portanto nós fizemos uma cedência.
Agora o que eu não entendo é o seguinte. Nós voltamos para Bissau e não
ouvimos muita gente questionar o que é que de facto aconteceu em Conakry
Quem é que está a dizer a verdade?
Mas há
prossupostos para se chegar à verdade. É preciso perguntar quem é que
levou os três nomes? Alguém tem dúvidas?... todos sabemos que foi o
Presidente José Mário Vaz, porque antes de sairmos de Bissau, os três
nomes já circulavam na praça pública. Se o Presidente da República levou
três nomes, alguém tem dúvidas que o Partido da Renovação Social (PRS) e
o Grupo dos 15 deputados estão alinhados com o Presidente da República?
Se
os três nomes não são nomes propostos pelo PAIGC, se o PAIGC voltou de
Conakry a dizer que foi retido um nome consensual, se o presidente da
Assembleia Nacional Popular diz que foi retido um nome consensual, como é
que se pode ter dúvidas que houve realmente a escolha de um nome, só
porque a CEDEAO não divulga o nome de forma explícita?
A
CEDEAO não divulga esse nome de forma explícita, porque no início desse
diálogo em Conakry, entendeu-se que é preciso respeitar os órgãos de
soberania nacionais. Um Presidente da República é um Presidente da
República e, portanto escolhido o nome é preciso dar-lhe a prerrogativa
de ser ele a anunciar esse nome. Mas já que o próprio Presidente da
República não respeitou esse princípio, então nós estamos a incitar a
CEDEAO e demais entidades da comunidade internacional para tornarem
público a Acta e o Relatório dessas negociações que irá esclarecer as
coisas.
OD: Após a pressão dos partidos
políticos da Guiné-Bissau, a representação da CEDEAO no país publicou
apenas a cópia do acordo em três línguas, onde não consta nenhum nome.
DSP:
Mas claro que não consta, estou a dizer que o acordo não chega a esse
ponto, porque é uma competência reservada ao Presidente da República. Eu
penso que vocês deviam ter também interesse em ter acesso ao código de
postura que foi acordado antes do início das negociações. As partes,
quando chegaram a Conakry, aceitaram um código de postura e, neste
código de postura estava escrito que nenhuma entidade devia divulgar
partes ou o tudo aquilo que estava a acontecer. Para quê? Para reservar
ao Presidente da República, enquanto primeiro magistrado da Nação, o
direito de fazê-lo.
Portanto, se estamos a
procurar coisas aonde elas não existem, não encontraremos nada. O que o
mediador pode publicar é o acordo. O acordo é público! Porque é que nós
falamos em ata ou relatório, porque pensamos que não há ninguém que
conduza uma mediação e não elabore uma ata ou um relatório.
Alguém
vai perguntar-me, você viu esse relatório?. Não, não vi relatório
nenhum, porque eu não estava a escrever relatório nenhum! Se eu fosse
aqui o vosso mediador entre os senhores para qualquer entendimento, eu
facilitaria o vosso encontro, mas no final eu vou ter uma memória de
todos os passos que nós demos até chegar ao acordo. O que colocaria na
mesa dos senhores seria o acordo a que se chegou.
O
que nós estamos a pedir é que a memória do mediador sirva para
realmente esclarecer quem está a dizer a verdade em relação a este
processo.
OD: Senhor presidente, até onde o relatório e a ata podem sobrepor-se ao acordo assinado e que foi divulgado publicamente?
DSP:
Não, nós não estamos a dizer que a ata deve sobrepor-se ao acordo. O
que nós estamos a dizer é que o acordo é tanto a parte que ficou
escrita, como eventualmente a parte que não ficou escrita. Entre
cidadãos íntegros, entre instituições que respeitam a sua palavra não é
preciso estar escrito para ser um contrato. Mas há uma coisa que acho
que escapa às partes: nós fomos à Conakry numa perspetiva de
sinceridade, porque pensamos que todos tínhamos consciência de ter
deixado Bissau numa situação de bloqueio.
Nós
deixamos em Bissau uma situação de bloqueio. A Assembleia Nacional
Popular não estava a conseguir funcionar. O que serve ao PAIGC tentar
ser esperto e tentar enganar os outros, se ao enganá-los nós voltariamos
irremediavelmente à situação de bloqueio? É isso que nós não
entendemos. Nós fomos à Conakry negociamos, chegamos a um acordo e
entendemos que com esse acordo iriamos desbloquear a situação. Se acha
que ficando com o texto escrito e que vale apenas aquilo que ficou
escrito, se pensa que com isso saia ganhar, desculpem-me dizer que isso é
uma esperteza completamente saloia. É uma esperteza saloia porque o
acordo entre as partes de um processo bloqueado devia ser realmente de
interesse de todos. Porque? Porque él que estamosa negociar?
Nós
estamos a negociar porque queremos desbloquear a situação do nosso
país. O que serve tentar enganar-me? Digo não...não... se não ficou
escrito, eu não tenho nenhuma responsabilidade sobre isso. Ale?! Agora
como é que me obriga a ir ao seu encontro? A memória que estamos aqui a
testemunhar em relação àquilo que aconteceu em Conakry é precisamente
porque nós sabemos que não só estamos seguros daquilo que estamos a
dizer, como também houve entidades que testemunharam o momento e que
sabem que foi isso o que aconteceu. Se dizem que não aconteceu, eu
compreendo que eles tenham algumas reticências em dizê-lo . porque há um
Presidente da República metido no processo, então ninguém quer
desrespeitar ou passar a frente do Presidente da República. Se parte do
acordo não é observado é porque não há acordo! Não havendo um acordo,
voltamos ao ponto de partida, o que significa voltar ao ponto de
partida? É voltarmos à nossa Constituição.
O
Presidente da República cada vez que demite um governo, devia
compreender que o que a Constituição lhe diz é que convide o partido
vencedor das eleições para formar novo governo. E ele disse não... eu
não posso convidar o partido vencedor para formar novo governo, porque
esse partido já não tem a maioria na Assembleia. Não é competência do
Presidente da República decidir quem tem essa maioria. Por quê? Porque
só se sabe quem tem maioria, aquando da votação na Assembleia Nacional
popular. A nossa Constituição não confere essa competência ao Presidente
da República.
O Presidente vai dizer que
invocou isso na Assembleia, que já há uma nova maioria e uma nova
configuração e de seguida vai dizer que o PAIGC não deixou que o
programa chegasse à plenária... Afinal, não tem uma nova maioria. A
Assembleia Nacional Popular é constituída por todos os órgãos, não é só a
plenária. A plenária pode ser o maior órgão. Portanto, é
verdadeiramente uma estratégia saloia!
OD:
Apesar do Comité Central ter decidido, na sua resolução, que o partido
não participaria no governo de Umaro Sissoco Embaló e nem permitiria que
os seus dirigentes fizessem parte do mesmo. É possível que o PAIGC
receba o Primeiro-ministro SissocO2
DSP: Com certeza! Como
Primeiro-ministro, não! Mas enquanto cidadão, sim. Até invocou ser um
militante do PAIGC. O que nós estamos a dizer é outra coisa. Eu
compreendo que muita gente quer colocar o acento tónico na figura de
Sissoco, como ontem quiseram colocar um acento tónico na figura do
Baciro Djá, assim como eventualmente no futuro poderão colocar o acento
tónico nas outras figuras. O problema não é esse, não é Sissoco. O
problema não é Djá, o problema não é Braima, o problema não é nada
disso. Os problemas são as leis e os princípios. Reparem, todos nós,
independentemente das funções que exercemos, somos parte desta
sociedade. Nós dizemos que a política é também um projeto de sociedade.
OD: Senhor presidente, há um mistério à volta desses documentos. Mesmo os signatários não têm acesso ao relatório?
DSP:
Não têm como procurá-lo, porque é um documento interno do mediador. O
mediador sabe que está a falar de uma entidade soberana.
OD: O Senhor tem acesso a esses documentos?
DSP:
Não, eu não posso ter acesso a esses documentos. O que eu estou a dizer
é que um mediador, quando conduz um processo de mediação, tem que
elaborar um documento. Agora uma coisa completamente diferente é que se
ele pode torná-lo público. O mediador entendeu que devia apresentar o
documento exclusivamente à Cimeira dos Chefes de Estado da Comunidade
Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). Foi esse o seu
entendimento. Mas nós, o que estamos a dizer é que alguns dos partidos
que tomaram parte na mediação estão a pôr em causa a seriedade do
mediador.
É chegado o momento de o mediador
tornar público esse documento. Nós sabemos que o mediador está preparado
para fazer as duas coisas. O Mediador está preparado para convidar o
Presidente da Assembleia Nacional, Cipriano Cassamá, acompanhado dos
líderes das bancadas parlamentares, para divulgar, ele, Cipriano
Cassamá, o conteúdo do documento. Isso nós sabemos. Sabemos também que o
mediador prepara-se para, na próxima Cimeira de Chefes dos Estados da
CEDEAO, tornar público o documento.
Não houve
uma oportunidade de torná-lo público, porque em Lomé, no Togo, aquando
da Cimeira dos Chefes de Estado, o Presidente da República da
Guiné-Bissau não se mostrou disponível para participar num encontro no
qual o documento seria divulgado, invocando que não se sentia bem.
Abandonou Lomé e foi para Lisboa. Foi ali que ouvimos o Encarregado dos
Negócios Estrangeiros a dizer que o Presidente não se sentia bem e que
estava no hospital.
Mas duas horas depois,
estava em casa e no dia seguinte estava a viajar para Bissau. Temos que
tratar o Estado como Estado e chega de gozar com o nosso povo, fingindo
que é toda a classe política, não. Todos sabem quem está a brincar com a
situação do país. Que custe o que possa custar, mas que o resultado
possa significar realmente um ultrapassar definitivo deste estado de
coisas.
OD: Domingos Simões Pereira é do
Partido da Convergência Democrática (PCD) ou do PAIGC? Chegou a ser
dirigente ou militante do PCD?
DSP: Eu nunca
fui do PCD, nunca. A minha trajectória política acompanhou a minha
própria geração e eu não sou da geração do PCD. No período da fundação
do PCD não estava cá. Vim de férias e tive a informação sobre o projecto
de formação do PCD. Eu nunca fui do PCD, portanto, esta é uma suposição
que eu já ouvi e que penso que corresponde a esta deriva nacional, uma
tentativa de desacreditar tudo e todos.
Acho
que o meu irmão foi, na primeira legislatura da abertura democrática, ou
terá sido candidato a deputado pelo PCD. Eu não! Eu nunca tive uma
ligação com o PCD. Tenho muitos amigos que são do PCD, eu tenho respeito
pelo PCD como tenho respeito por todos os partidos políticos, mas eu
não tenho nenhuma ligação com o PCD. Sou exclusivamente do PAIGC, nunca
pertencie nem alguma vez fui simpatizante de qualquer outro partido
político.
OD: Qual um dos seus irmãos foi candidato a deputado pelo PCD?
DSP: Camilo Simões Pereira.
OD: Como é que encontrou o PAIGC depois do congresso... o Senhor herdou um partido de vícios?
DSP:
Não... eu encontrei um partido com muitas dificuldades, mas eu não
posso dizer que isso me tivesse surpreendido. Eu, antes de me candidatar
à liderança do partido, eu fiz um diagnòstico do partido e avaliei a
situação interna e a Visibilidade externa do partido, portanto eu sabia
ao que ia...
Digo simplesmente que qualquer
líder traz para as estruturas do partido aquilo que ele tem de melhor ou
aquilo que ele pode oferecer. O que eu digo é que Amílcar Cabral foi o
fundador do PAIGC e ao fundar o PAIGC, propôs uma visão e uma filosofia.
Portanto, um líder com uma filosofia, com uma Visão e com um futuro.
Cabral conquistou uma legitimidade política e uma legitimidade
histórica.
Nino Vieira terá sido o substituto
de Amílcar Cabral em termos de liderança do PAIGC. Aquilo que Nino
Vieira assume e melhor representa no seu consulado foi a sua
legitimidade política e a histórica. Já não tanto a parte da filosofia
política e já não tanto a sua ideologia, mas de legitimidade, ele tinha.
Carlos
Gomes Júnior, a quem substituiu de verdade? Houve sim outros
presidentes intermédios. Mas de verdade, o eleito em 2002 foi Carlos
Gomes Júnior e o que Carlos Gomes Júnior trouxe foi uma ideia de algum
modernismo. Um modernismo visto da perspectiva de um empresário com
capacidade para dar ao partido aquilo que o partido não tinha. O que é
que partido não tinha em 2002!? Não tinha financiamento, ou melhor não
tinha a capacidade financeira.
Não teve
capacidade de atender às expectativas dos militantes durante muito
tempo. A partir do 2002, passamos a ter um líder do partido que se
afirmou, fundamentalmente, pela sua capacidade económica e financeira,
mas reconhecido como tal. Muitos entendem, dentro do partido, que era
isso que fazia falta ao partido. Até porque é preciso lembrar que a
abertura política proclamada desde 1990 e a sua efectivação em 1994,
consubstanciou-se numa espécie de simplificação desse exercício
político.
Para muita gente, quando falamos de
política, estamos a falar sobretudo de duas coisas. Estamos a falar de
ideologia que instrui o partido e estamos a falar da conquista do poder.
Quando nós adotamos a democracia, para muitos nós abandonamos a
componente ideológica e assumimos exclusivamente a componente da luta
pelo poder. Se ficamos numa perspectiva exclusivista de luta pelo poder,
o importante é quem é que nos dá as munições importantes para podermos
conquistá-lo.
Nessa altura, a avaliação da
grande maioria dos militantes do partido era que o meu presidente,
Carlos Gomes Júnior, trouxe exactamente aquilo que o partido não tinha. É
nessa perspectiva que eu digo que a minha chegada ao partido vem
representar uma nova ruptura em todo esse processo, porque eu não tenho
nem legitimidade histórica e não tenho nem legitimidade política e nem
tenho dinheiro para dar ao partido.
Afinal, o
que tenho para dar ao partido?... eu digo que tenho para dar ao partido
um retorno à sua ideologia. Eu proponho ao partido ideias no sentido de
ancorar o partido à uma filosofia política de princípio de esquerda,
igualitária, inclusiva e de desenvolvimento, mas isso tem que ser feito
com o tempo e tem que ser feito com muito trabalho.
OD:
Há quem diga que foi aí que começou a sua ruptura interna no partido
porque o senhor não tem dinheiro. É verdade que o choque começou aí?
DSP:
Eu penso que o choque tem a ver não só com o facto de eu não ter
dinheiro e não poder dar dinheiro. O choque tem a ver, sobretudo com o
facto de os que tinham dinheiro pensarem que deviam ser os substitutos
legítimos do presidente do partido que tinha sido afastado. Em 2012,
quando Carlos Gomes Júnior foi afastado na sequência de um golpe de
Estado, havia dentro do partido militantes, dirigentes que entenderam
que tinha chegado a sua vez.
Porque se a lógica
é de concorrência através de argumentos como recursos financeiros,
então eles estariam melhor preparados e na linha de sucessão. Portanto,
eu chego à Guiné e regresso ao partido. Era quase como alguém que veio
de fora. Portanto, visto nessa perspectiva de concorrência de quem tem
capacidade, sobretudo financeira, é que deveria assumir o partido, então
eu não deveria candidatar-me. Contudo eu entrei na candidatura,
apresentei um projecto político e esse projecto foi mobilizador e isso
representou um grande choque para muita gente.
OD: Não pensou que em algum momento poderia ter os problemas que tem hoje?
DSP:
Não...eu penso que o problema não é meu. Penso que o problema é do país
e da sociedade. Eu penso que este é um problema que nós precisamos
enfrentar. Pode não ser o Domingos e pode não ser o Nhaga, mas alguém
vai ter que enfrentar essa situação. A viabilização da sociedade através
de recursos financeiros é insustentável e é uma simples miragem. Todos
acreditamos que a solução através do atendimento das necessidades
imediatas é a fórmula que melhor funciona. Ora, em termos de partidos
políticos e em termos de projectos de especificidade, isso é uma
miragem. Se o candidato à liderança tivesse a capacidade de dar a todos
tudo aquilo que cada um ambiciona, não haveria qualquer tipo de
problemas. Ele seria o nosso melhor líder.
O
problema é que por definição você nunca tem o suficiente para dar a
todos tudo o que querem e, portanto cada vez que consegue atender às
necessidades e expectativas de 5 ou 10 pessoas, ficam centenas por
atender. Eu acredito que a solução não é dar. A solução para mim é criar
oportunidades para que todos possam aceder (e resolver as suas
necessidades), dependendo do seu empenho, dependendo da sua capacidade e
dependendo da sua inteligência.
OD: Podia explicar-nos de uma forma sintética a origem da crise entre a direcção do partido e o grupo dos 15 deputados?
DSP:
Os 15 é uma falsa questão! É uma falsa questão... os quinze é uma falsa
questão. Os quinze acabaram por ser a solução que o Presidente da
República encontrou para justificar a oposição que quis propor contra o
meu governo. Ele tentou muita coisa. Começou por dizer que "a
unanimidade mata a democracia", invocando que não era normal o PAIGC ter
o entendimento que tinha com o PRS.
Invocou
muitas coisas, invocou a corrupção e, foi tentando muita coisa até
chegar aos 15. Os quinze acabaram por servir os propósitos do Presidente
da República. Os 15 não existiam.
É muito importante, quando
diz – quando é que nós chegamos a este ponto de rutura interna dentro do
partido? Nós chegamos à Cacheu para um congresso. No Congresso de
Cacheu havia cerca de oito (8) candidatos, todos convencidos que tinham
condições para liderar o partido, porque o presidente tinha sido
afastado. Nas vésperas da ida para Cacheu ou mesmo em Cacheu acabou por
acontecer uma coisa interessante. Seis (6) candidatos decidiram
juntar-se à volta daquilo que se chamou na altura de Aliança, dois (2)
outros candidatos ficaram de fora.
Entretanto,
quando chegamos a Cacheu, qual era o entendimento daqueles que entraram
na lista da Aliança - é dizer, nós vamos seguir um determinado padrão de
comportamento dentro do partido, o que significa que se algum de nós
vencer dentro do partido vai promover uma distribuição democrática dos
diferentes cargos dentro do partido. Na altura ficaram de fora o Braima
Camará e o Aristides Ocante da Silva.
Fomos ao
congresso, houve votação e eu fui eleito presidente do partido. Ao ser
eleito presidente do partido, obviamente que eu juntei-me ao grupo dos
cinco candidatos que desistiram a meu favor. Entretanto, eu considero
que foi perfeitamente normal que eu quisesse criar uma estrutura
directiva do partido que integrasse todos os candidatos que desistiram
ao meu favor, mas eu fiz um pouco mais. Eu convide Braima Camará a
apresentar propostas para nomear elementos que o apoiaram para O Bureau e
O Comité Central.
Onde é que houve
divergências? A divergência aconteceu na própria perceção dessa divisão.
Para o Braima Camará, em Cacheu só houve dois candidatos, porque quando
os cinco (5) desistiram a meu favor, ele considerou que esses já não
eram candidatos, porque desistiram. E portanto, assim que eu ganhei o
congresso, ele achou que, quando falei de integração significou que nós
deveriamos dividir a nomeação dos elementos nos órgãos do partido, quase
que de forma equitativa. Ele devia ter 45 por cento e eu devia ter 55 a
60 por cento. Mas essa não era a minha perceção! A minha perceção e
daqueles que saíram como vencedores em Cacheu, é que eu ganhei sim, mas
eu ganhei, pertencendo a uma Aliança.
Portanto,
todos os outros que desistiram para entrar na Aliança, era
perfeitamente normal que tivessem uma quota para colocar os seus
apoiantes na direção do partido. A primeira grande discussão foi essa.
Quando ele disse que os meus apoiantes foram preteridos, não é verdade. O
que aconteceu foi que ele teve cerca de vinte e tal por cento de
presenças nos órgãos do partido e ele gostaria de ter quarenta e cinco
(45). Mas se ele tivesse 45%, teria mais gente que eu, porque eu tive
que distribuir esses cargos a vários elementos (da Aliança).
A
situação continuou. Chegamos à Bissau e tive muitas reuniões com o
Braima Camará. Propus-lhe que como é empresário, eu pensava que nós
poderiamos entendermo-nos. Apoiá-lo-iamos vamos naquilo que fazia,
porque ele é empresário. Que deixasse que as estruturas do partido
realmente funcionassem. Ele não concordou comigo, achou que devia
candidatar-se até porque com a escolha do José Mário Vaz como candidato
presidencial, ele achou que tinha capacidade e força para impor-se
dentro do partido. E ele foi, cada vez que havia uma candidatura
apresentava-se e perdia. Depois dizia que estavamos a juntarmo-nos
contra ele, pronto, foi este sentimento que foi fazendo mossa.
OD: Havia outros motivos para essa ruptura?
DSP:
O grande momento, o grande elemento de ruptura foi o famoso FUNPI que a
Câmara do Comércio Industria, Artesanato e Serviços (CCIAS) considerava
como uma taxa paga pelos empresários. E que a CCIAS tinha o direito de
receber essa taxa. Eu tinha uma perceção completamente oposta. O FUNPI
não é uma taxa, o FUNPI é um imposto, sendo um imposto, a única entidade
que tem competência para cobrar um imposto num país é o Estado. Até nos
países mais liberais do mundo, os Estados Unidos da América, a
Inglaterra e outros, ninguém delega ao setor privado a cobrança de
impostos.
Às vezes as pessoas não têm ideia
daquilo que estamos a falar. Estamos a falar de o Estado entregar a um,
dois ou três elementos do setor privado, valores extraordinários.
Estamos a falar de os elementos do setor privado tirarem por mês
qualquer coisa como três a quatro mil milhões de francos CFA, que nem
chegam a justificar. Estamos a falar não só da taxa de exportação da
castanha de cajú, estamos a falar da taxa de exportação de outros
produtos e de taxa de importação de produtos alimentares.
Quando
nós começámos a pedir justificativos dos valores que eles recebiam,
entenderam que estávamos a pôr em causa os direitos conquistados.
Cheguei até a dar um exemplo de forma pública: eu tinha ido ao hospital,
eu costumava visitar os hospitais. Criei um fundo para tentar
acompanhar aquelas famílias mais carenciadas, porque encontrei casos em
que havia pessoas que não medicavam, porque não tinham 15 mil francos
CFA.
Aconteceu um caso muito concreto. Uma
dirigente do PAIGC sentiu-se mal numa reunião do Comité Central e foi
levada ao hospital. Quando a reunião terminou por volta da meia-noite,
fui ao hospital visitá-la, felizmente, ela já estava a dormir, mas havia
uma mulher a chorar copiosamente e perguntei o que se passava.
Disseram-me que a mulher estava a chorar porque há quatro dias que não
tomava a sua medicação. E quanto é que custava? Quinze mil francos CFA,
disseram. Disse que não era normal. Como é que um Estado não conseguia
atender uma cidadã que necessitava de 15 mil e está a oferecer a outros
cidadãos doze mil milhões de francos CFA por ano, correspondentes a 24
milhões de dólares? O que é que justifica isso?
Mas
eu não me coloquei na posição de dono e senhor de tudo, dizendo a
partir de agora eu faço como quero. Pedi uma auditoria. Assim que
auditoria foi feita, as pessoas escreveram cartas para dizer que não iam
colaborar com a auditoria, porque não estavam de acordo com a sua
realização. Você imagina que um Estado que não pode fazer auditoria as
suas próprias contas!
Porquê é que nós todos,
enquanto cidadãos, não pedimos a apresentação de contas a todos? Eu
estou aqui, eu exerci uma função de Primeiro-Ministro. Fui acusado de
muita coisa, pedi que as pessoas apresentassem as provas disso. Da mesma
forma, eu pedi que as pessoas que geriram os fundos que tiveram
proveniência pública que também apresentassem (as suas contas). Porque é
que isso tinha de ser razão de conflito direto entre uns e outros? O
dinheiro é de nós todos, porque é que tinha que ser gerido por uns e não
por outros?
Já houve momentos em que nos
acusaram, dizendo que o governo do Domingos Simão Pereira é que tomou o
dinheiro do FUNPI e utilizou-o. Não aconteceu nada disso. O que
aconteceu foi que eu de instruções para que o ministério das finanças
não pagasse mais nenhum franco do FUNPI...não pagar! Mas a pressão foi
tanta. Houve uma altura em que a Câmara do Comércio mandou buscar
mulheres no interior, porque deviam ir às feiras de Dakar e Abidjan. E
elas ficaram aqui acampadas, a espera que o governo disponibilizasse
essa verba para poderem viajar. Isso foi um método de pressão. Para que
depois se pudesse dizer às mulheresse elas não fossem a Dakar e Abidjan,
era porque o governo não queria entregar-lhes o dinheiro. De tanta
pressão, o ministro das finanças acabou por ceder e entregou um montante
superior a quatrocentos e vinte milhões (420.000.000) de francos CFA.
Desses
420 milhões disponibilizados, nós sabemos que elas utilizaram cerca de
80 milhões nas feiras, 20 milhões foram gastos na gestão corrente da
câmara e os restantes trezentos milhões não foram justificados. Foram
levados para parte incerta e ninguém prestou qualquer tipo de contas. O
que foi que eu decidi? Decidi, enquanto chefe do governo, ir ao
Ministério das finanças, verificar quanto é que havia na conta. Mandei
pagar a todas as instituições internacionais com quem tínhamos dívidas, a
todas. Pagámos uma média de 200 a 300 mil dólares a cada uma dessas
instituições. Eu não peguei nesse dinheiro e meti noutro sítio! Não,
paguei as dívidas públicas que nós tinhamos.
OD: Qual era o montante exacto utilizado no pagamento das dívidas?
DSP:
Não conheço o montante exacto, eu sei que estaria em causa cerca de
sete ou oito mil milhões de francos CFA, o que corresponde a cerca de 16
milhões de dólares. Sei que pagamos a todas as instituições um valor
básico que permitiu-nos, de fato, prepararmo-nos para a mesa redonda e
chegar à mesa redonda numa situação de verdadeira solvência, porque
deixamos de ter luzes encarnadas e passamos a ter luzes verdes o que
criou um ambiente de diálogo com a comunidade internacional.
[fim da primeira parte da entrevista]
Continuação da entrevista na próxima edição.
Por: António Nhaga / Assana SambúSene Camará
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