[ENTREVISTA 1/2] A especialista guineense em Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Internacional Penal, Aua Baldé, disse que a grande dificuldade da Guiné-Bissau é a efetivação das leis existentes. Para isso, aconselhou a sociedade civil guineense bem como as organizações que zelam pela defesa dos direitos humanos que é preciso reivindicar mais e exigir das autoridades o cumprimento das leis existentes. A jovem especialista que esteve no país para participar numa conferência internacional de ativismo em fevereiro do ano em curso respondia assim à questão se os instrumentos jurídicos do país são suficientes para a promoção e proteção dos direitos humanos.
“Acho que há um sistema legal bastante bom na Guiné-Bissau. A grande dificuldade é a efetivação das leis existentes e é preciso reivindicar mais e exigir o seu cumprimento. Este sempre foi o maior desafio em qualquer um dos países africanos e a Guiné-Bissau não é uma exceção. Há organizações que estão a fazer um trabalho interessante, nomeadamente a Liga Guineense dos Direitos Humanos, mas lanço-lhes um desafio. A Liga foi muito ativa no início dos anos 90 e penso que poderá voltar a ter esse papel relevante, sobretudo se usar meios para lá dos domésticos”, realçou para de seguida criticar os sucessivos governos que segundo a sua explicação, nunca produziram relatórios sobre a situação dos direitos humanos para a Comissão Africana. Encorajou neste particular as organizações da sociedade civil a começarem a produzir relatórios para a Comissão Africana.
Baldé, que é igualmente especialista em direito penal internacional, falou durante a entrevista dos mecanismos legais que os cidadãos africanos podem usar para chegar ao Tribunal Africano e à Comissão Africana. Explicou, no entanto, que a Comissão Africana permite que organizações da sociedade civil produzam “Relatórios Sombra” sobre a situação dos direitos humanos num determinado país. Acrescentou ainda que às vezes, o uso desses mecanismos com o tempo pode exercer pressão localmente e ajudar na correção de alguma coisa…
O Democrata (OD): Lançou, no país, o livro da sua autoria que fala do “Sistema Africano de Direitos Humanos e a Experiência dos Países Africanos de Língua Oficial Português”. Pode explicar de forma sintética o interesse de versar sobre o sistema africano dos direitos humanos, num continente onde a justiça ainda é uma miragem e os direitos humanos, para os ativistas e críticos, se resumem apenas aos papeis ou na proteção das elites e políticos no poder?
Aua Baldé (AB): O meu interesse pelos direitos humanos não é uma coisa recente. Neste campo dos direitos humanos, há mais de uma década que tenho tentado intervir tanto numa abordagem teórica bem como com trabalhos práticos. É verdade que os direitos humanos, do modo geral, não só em África, mas talvez mais acentuadamente em África, a efetivação dos direitos humanos representa um desafio e isso não significa que não seja uma área que possa suscitar um interesse que deva ser estimulado. Dai que tenha tido a ideia de elaborar este livro que foi um projeto muito antigo, que surgiu há cerca de uma década.
Enquanto estudante destas questões, havia poucas disponibilidades, sobretudo em língua portuguesa, de manuais ou livros que versassem sobre esta questão. Esta foi a razão pela qual decidi iniciar a pesquisa a título individual, sem colaboração de nenhuma instituição. Na primeira fase, estive como investigadora no “SOAS – School of Oriental and African Studies: Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres”, sob alçada da Fundação “Mo” Ibrahim [Mohammed Ibrahim é um empresário bilionário sudanês-britânico que criou a Fundação denominada “Mo Ibrahim“, para incentivar uma melhor governança na África. Criou também o Índice “Mo Ibrahim”, para avaliar o desempenho das nações. É membro do Conselho Consultivo Regional de África da London Business School] que patrocinou a pesquisa inicial para a composição do livro.
No que diz respeito a África Lusófona ou ao mundo PALOP, senti que havia na altura um desconhecimento total sobre o sistema africano: Como funcionam os mecanismos regionais de promoção e proteção dos direitos humanos. Na verdade, quando iniciei a pesquisa para a composição do livro, não havia um único livro que debatesse estas questões. Daí justamente o meu interesse e o que senti que poderia ser o meu contributo. Percebi que, tendo feito uma especialização em direito internacional dos direitos humanos em Harvard, isso poderia ser um contributo adicional uma vez que já tinha as ferramentas para entender melhor o próprio sistema.
O objetivo do livro sempre foi ajudar académicos, estudantes ou ativistas dos direitos humanos no terreno. Como sabe, no mundo lusófono africano não há uma cultura daquilo que é a advocacia para os direitos humanos. Entendi que, havendo um instrumento que explica um bocadinho esta questão, talvez isso poderá suscitar interesse das diversas entidades que trabalham nestas questões em como poderão, de forma mais sistemática, olhar para o lado dos seus, numa tentativa de maior proteção dos direitos humanos.
OD: Até que ponto este livro pode ajudar na “luta” travada pelos ativistas dos direitos humanos na Guiné-Bissau, que muitas vezes veem os seus direitos restringidos pelas autoridades nacionais, certas vezes reprimidos por forças de segurança…
AB: Espero que seja uma chamada de atenção, porque o que sinto é que olhamos muito para os mecanismos internos, ou seja, os mecanismos domésticos de cada país. Espero que o livro sirva de ferramenta para os ativistas poderem entender que quando falham os mecanismos domésticos, que existe um sistema regional que permite reivindicar esses direitos a nível supranacional. É esse o objetivo.
OD: Acha que os instrumentos jurídicos (leis) existentes são suficientes para a promoção e proteção dos direitos na Guiné-Bissau?
AB: Acho que há um sistema legal bastante bom na Guiné-Bissau. A grande dificuldade é a efetivação das leis existentes! É preciso reivindicar mais e exigir o seu cumprimento. Isso sempre foi o desafio em qualquer um dos países africanos e a Guiné-Bissau não é uma exceção. Há organizações que estão a fazer um trabalho interessante, nomeadamente a Liga Guineense dos Direitos Humanos, mas lanço-lhes outro desafio. A Liga foi muito ativa no início dos anos 90 e penso que poderá voltar a ter esse papel relevante, sobretudo se usar meios para lá dos domésticos.
Justamente os meios que referi no livro. Mas independentemente disso, acho que existe um sistema e apraz-me saber que mesmo a nível da juventude guineense e da sociedade civil, as pessoas estão muito alertas. Penso que o mecanismo existe e que deverá haver uma reivindicação e que independentemente daquilo que seja a reação das autoridades, devemos persistir no caminho de uma maior reivindicação dos direitos humanos na Guiné.
OD: Critica-se muito o sistema judicial guineense, considerado frágil e que bloqueia a atividade dos ativistas dos direitos humanos. Como especialista de direito internacional e dos direitos humanos, o que se pode fazer para a promoção e proteção dos direitos humanos neste sentido?
AB: Eu pergunto-me se o sistema é frágil? Ou será que há mecanismos que bloqueiam o sistema. Será que é essa a questão!? Eu acho que a solução passa pela reivindicação e uso dos mecanismos existentes para fazer valer esses direitos. Parece-me que os instrumentos legais existem e que há uma corelação de forças, mas isso não deverá fazer com que os guineenses e os ativistas dos direitos humanos, em particular, recuem. Devem persistir.
OD: O que bloqueia o sistema judicial guineense, do seu ponto de vista?
AB: Eu acho que há vários fatores e um deles é o posicionamento das autoridades face àquilo que são os direitos humanos. Mas não é um fenómeno local. Há sempre uma tentativa de resistência das autoridades face ao que é a promoção dos direitos humanos e isso não é uma coisa necessariamente guineense. Penso que isso não deverá servir de entrave e que, independentemente de existirem resistências ou tentativa de bloqueio no concernente às questões do exercício do direito à manifestação ou outro tipo de liberdades e garantias, deverá haver persistência.
Agora podemos usar imensos meios de comunicação, nomeadamente as redes socias, para divulgar as iniciativas. Penso que devemos fazer uso disso, porque às vezes podem servir como forma de pressão contra as atitudes de bloqueio das autoridades.
OD: Voltando ao livro, qual é o papel da Comissão Africana e do Tribunal Africano na promoção e proteção dos direitos humanos no nosso continente?
AB: Tanto a Comissão Africana como o Tribunal Africano são essenciais na proteção dos direitos humanos. Quando se criou a Carta Africana dos Direitos Humanos e nos inícios quando se discutiu a questão dos direitos humanos no continente, houve certa resistência dos próprios Estados a criação do Tribunal. O Tribunal surgiu em momento posterior, ou seja, décadas depois da efetivação da carta e do começo do trabalho da Comissão Africana. Nesse sentido, podemos dizer que a Comissão Africana está mais tempo no terreno e, portanto, tem desenvolvido um trabalho mais proeminente.
Quero aproveitar para explicar que há dois papeis fundamentais da Comissão Africana, por um lado o da promoção dos direitos humanos que tem muito a ver com a divulgação e a sensibilização em matéria dos direitos humanos no continente. Por outro lado, existe a própria proteção dos direitos humanos que faz com que na própria carta exista o mecanismo de queixa em que os individuais ou os cidadãos dos Estados membros da União Africana podem dirigir-se a Comissão Africana e apresentar queixas de violação dos direitos humanos nos seus países ou abusos a que tenham sidos sujeitas.
É preciso esclarecer uma questão, apesar de ser técnica. É bom explicar que todo o trabalho que a Comissão faz, quando chega ao fim de um processo de queixa, emite uma decisão. Essa decisão é na verdade uma recomendação para os países, ou seja, a Comissão chega ao fim e diz que um certo país, em função de uma queixa, violou um tal direito e recomenda o referido país o que deve fazer para colmatar essa violação.
A Comissão não tem força vinculativa, ou melhor, as suas decisões não são vinculativas. Por isso tem havido certa resistência aos mecanismos do Tribunal, cujas decisões deveriam ser necessariamente vinculativas. Isso por o tribunal ter surgido num momento posterior. Neste momento existe realmente um Tribunal cujas decisões são vinculativas para os Estados.
Existem várias salvaguardas a fazer e a primeira é que o Tribunal não é de acesso direto aos cidadãos dos países signatários, a não ser que os países assinem uma declaração aquando da ratificação do protocolo do Tribunal a permitir esse acesso direto. E poucos países fizeram-no. Para já, a Guiné ainda nem sequer ratificou o protocolo. Há um protocolo para a criação do Tribunal que é anexo, uma vez que o Tribunal surgiu no momento posterior.
Há um protocolo adicional e há vários países africanos que já o assinaram. Porém, mesmo assinando para permitir a jurisdição do Tribunal Africano ou para dar o acesso direto aos cidadãos, é preciso pôr lá uma cláusula na qual se dirá que permitimos que, nos termos do artigo 36º, etc… que os cidadãos tenham acesso a esse mecanismo diretamente. Porém, a maioria dos países não o faz.
Isto para mim é uma manobra do próprio legislador. Na verdade, quanto muito, o que deveria ter feito era ter dito no caso de não haver nenhuma declaração expressa, os cidadãos têm acesso em vez de fazer passar pelos Estados para permitir acesso ao Tribunal. Obviamente que a maioria dos Estados não o permitem. Como podemos contornar esse mecanismo? É preciso fazer todo um processo de queixa através da Comissão Africana e quando a Comissão faz uma recomendação, isso é a sua decisão, como disse anteriormente.
Quando a Comissão faz uma recomendação e se o Estado não cumpre, então a Comissão pode tornar-se parte do processo e apresentar uma queixa em nome do particular ao Tribunal Africano. Acho que isso distância o cidadão dos países africanos daquilo que é um Tribunal com força de efetivar as decisões, enfim… Mas é o mecanismo que existe! Olhando para a evolução, acho que é um passo dado. Eu desafio os nossos governantes a ratificarem o protocolo que dê acesso direto aos guineenses.
OD: Esses obstáculos não criam dificuldades imensos ao funcionamento do Tribunal que deveria oferecer um bom serviço aos cidadãos africanos, de acordo com a sua experiência no direito internacional?
AB: Este é um dos grandes entraves no funcionamento do tribunal. Tribunal Africano tem várias dificuldades de funcionamento, mas eu diria que há uma história de resistência a efetivação dos direitos humanos no nosso continente da parte dos nossos dirigentes, através de instrumentos que aprovam e isso reflete-se não só na resistência inicial à Carta Africana. Nota-se também nesses mecanismos de bloqueio. Mas penso que devemos persistir e independentemente disso, devemos estar em alerta e reivindicar porque só engajando com o sistema é que podemos fazer com que o sistema funcione.
Quero ilustrar outro exemplo. Os países africanos devem, em princípio, elaborar um relatório bianual sobre a situação dos direitos humanos. Mas raramente fazem esses relatórios, aliás, se não estou em erro, a Guiné até ao momento ainda não fez nenhum relatório. Há uma outra componente neste livro e que me interessa que os ativistas dos direitos humanos percebam. Há um sistema chamado “Relatório Sombra” que as próprias organizações interessadas na promoção de direitos humanos num determinado país podem elaborar. Podem apresentar um “Relatório Sombra” perante a Comissão Africana, sobre a situação dos direitos humanos no país. Eu acho que às vezes se usarmos esses mecanismos, com o tempo pode ser que exerça pressão localmente.
OD: Relatório Sombra, significa o quê de concreto?
AB: Os Governos deveriam submeter, a cada dois anos, um relatório sobre a situação dos direitos humanos à Comissão Africana. Ou seja, é um mecanismo que se abriu para que possa haver uma discussão. Não é na verdade uma critica, porque o objetivo da submissão do relatório é iniciar o diálogo no qual o país relata em que situação está no que concerne aos direitos humanos, o que permitiria aos especialistas da Comissão Africana consultar o relatório e dar orientações para melhorar alguns aspetos. O objetivo é estabelecer um diálogo no sentido de melhorar a situação dos direitos humanos no continente africano.
OD: Então, cabe às organizações dos direitos humanos fazer o ‘Relatório Sombra’?
AB: Exatamente. As organizações dos direitos humanos podem engajar-se nesse processo, apresentando o relatório sombra. Porque normalmente a versão oficial, de acordo com a minha experiência, é uma versão mais colorida…
OD: Em relação à Guiné-Bissau, nem as organizações dos direitos humanos e nem a liga conseguiram usar este mecanismo, ou seja, produzir um relatório sombra para a Comissão?
AB: Infelizmente, não! Não há até ao momento este tipo do relatório da parte das organizações dos direitos humanos da Guiné-Bissau. E é um dos mecanismos que podemos usar e está ao nosso alcance.
OD: A possibilidade de produção do relatório sombra pelas organizações dos direitos humanos foi debatida durante a conferência de ativistas que decorreu no INEP?
AB: Debateu-se apenas a questão do ativismo em geral, porque várias pessoas apresentaram perspetivas diferentes, desde ativismo ambiental, cultural, todo o tipo de ativismo. Portanto, não foi uma questão concreta. Mas é um mecanismo que existe e que eu acho que vale a pena pensarmos num fórum e como podemos articular e fazer valer esses mecanismos, porque dá visibilidade à questão localmente.
OD: A nível da nossa sub-região, existe um tribunal que oferece serviços aos cidadãos dos países membros da CEDEAO. Como é que se pode recorrer ao tribunal da CEDEAO para a resolução de diferendos?
AB: A questão interessante em relação ao continente africano é justamente essa, que temos os mecanismos domésticos, aquilo que eu chamo sub-regionais, designadamente a CEDEAO e os outros mecanismos. Depois temos o mecanismo regional. Na verdade, é por isso que eu acabo por pensar que existem instrumentos, ou melhor, existe uma verdadeira plataforma de reivindicação desses direitos e que poderão ser usados.
O tribunal da CEDEAO tem sido muito progressista em relação à algumas decisões, nomeadamente houve uma decisão sobre o direito à educação que foi muito celebrada na comunidade que defende os direitos humanos, por ser uma decisão muito progressista. Enquanto uma pessoa que observa esses fenómenos, penso que o recurso até as estruturas mais próximas de nós e mesmo que supranacionais, por exemplo, a CEDEAO é útil.
A CEDEAO tem todo um contexto e a Guiné está mais próxima desta realidade e pode ser que até exerça mais pressão do que o Tribunal Africano que é já uma terceira via. Mas é bom frisar que nenhumas dessas vias impede a utilização da outra e pode haver uma utilização simultânea das duas. Como disse, não se pode recorrer diretamente ao tribunal africano, mas o tribunal da CEDEAO é de um acesso mais direto, portanto é o mecanismo que podemos usar.
OD: Há uma situação que é incompreensível para um cidadão comum africano. O julgamento dos líderes africanos acusados pelos crimes de guerra e crimes contra a humanidade…A Senhora dedica-se aos estudos e à pesquisa na área dos direitos humanos e o direito internacional penal. O Tribunal Africano não tem competência para julgar esses crimes de guerra de que são julgados os líderes africanos no Tribunal Penal Internacional?
AB: O meu interesse pelo direito internacional penal vem justamente daí, porque a África tem sido a grande vilã do sistema de justiça internacional. A minha pesquisa de doutoramento visa justamente essa área. Na verdade, eu olho para a questão da relação entre os Estados e o Tribunal Penal Internacional e tive a sorte e o privilégio de poder trabalhar como “Visiting Professional – Visitante Profissional” no Gabinete da Procuradora, a gambiana, Fatou Bensouda, durante seis meses em Haia (Holanda) há dois anos.
Sobre a questão, eu acho que não é só para um cidadão comum africano, também para mim enquanto jurista é isso que me interessa abordar. A questão política por detrás da justiça internacional. É uma análise que faço do ponto de vista jurídico e filosófico e a minha tese reflete sobre a questão política por detrás.
O que posso dizer em relação a isso, uma vez que não existe um tribunal africano que possa tomar a dianteira nessas questões? Devo dizer que a União Africana em 2014, adotou o protocolo de Malabo (Capital, da Guiné-Equatorial) em que dá jurisdição penal internacional ao Tribunal Africano dos Direitos Humanos. No papel, existe essa previsão de o Tribunal Africano poder conhecer as questões dos crimes de guerras e crimes contra a humanidade, etc…
Houve uma reação muito antagónica a essa decisão do Tribunal Africano, uma vez que neste mesmo protocolo que dá essa jurisdição penal, houve a inserção de um artigo em que se dava imunidade aos dirigentes. Isso gerou muita polêmica. O que se entendeu na comunidade internacional que estuda esses fenómenos no direito internacional penal é que não foi uma tentativa genuína de engajar e de trazer essa jurisdição penal para o continente, mas mais uma forma de dar imunidade a certas pessoas! Eu acho que depois da segunda guerra mundial e de julgamentos de Nuremberg, a questão da imunidade ficou clara. Portanto, se uma pessoa, independentemente do lugar que ocupa, comete ou incita ao cometimento de crimes contra a humanidade ou crimes de guerra, deverá necessariamente responder por isso.
São três aspetos que quero realçar aqui. A segunda é que há uma coisa chamada jurisdição universal. Lembra-se do caso de antigo Presidente Hissène Habré do Tchad, que foi julgado no Senegal. Foi julgado ali porque há um princípio de jurisdição universal em que determinadas pessoas que cometam certos crimes, qualquer país pode chegar-se à frente e julgar o caso, independentemente de todos estes mecanismos que referimos. E foi isso que o Senegal fez e do meu ponto de vista, foi uma boa reação na medida em que demostrou que o continente é realmente capaz de lidar com questões como essas.
A terceira parte tem a ver com a relação entre o Tribunal Penal Internacional e os Estados (este aspeto é a parte central da minha investigação). Eu devo dizer que na base do princípio da complementaridade no Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional só deverá intervir nos casos em que os países que fazem parte do Estatuto de Roma não possam ou não queiram intervir. O sistema do Tribunal Penal Internacional chama atenção que a primeira responsabilidade por estas questões é dos Estados onde ocorreram os crimes.
Mas ao mesmo reconhece-se que muitas vezes pode ser numa situação pós-conflito em que as estruturas jurídicas estejam fragilizadas e que não há possibilidades de tratar dessas questões internamente, ou até quando existe certa resistência dos próprios Estados em lidar com essas questões. Nesse caso, a jurisdição passa para o Tribunal Penal Internacional. Podemos ver isso se olharmos para várias decisões do tribunal recentemente como por exemplo o caso de Jean-Pierre Bemba Gombo [Bemba é um político da República Democrática do Congo. Foi um dos quatro vice-presidentes do Governo de Transição da RDC de 17 de julho de 2003 a dezembro de 2006. Bemba também liderou o Movimento de Libertação do Congo, um grupo rebelde que se tornou partido político. Foi julgado pelo tribunal penal internacional por crimes contra a humanidade e três acusações de crimes de guerra e condenado em março de 2016. Em junho de 2018, foi absolvido pelo tribunal que o tinha condenado a 18 anos de prisão por crimes de guerra contra a humanidade].
No caso de antigo Presidente de Costa de Marfim, Laurent Gbagbo [ex-presidente de Costa do Marfim de 26 de outubro de 2000 a 4 de dezembro de 2010. O seu mandato foi marcado por uma guerra civil que, por vários anos, dividiu o país em dois. Foi acusado de crime de guerra e julgado pelo Tribunal Penal Internacional que acabou por absolve-lo dado que as provas apresentadas eram insuficientes para provar os crimes de que era acusado]. O meu apelo neste caso seria dizer que não devemos olhar para o tribunal com o receio. Devemos engajarmo-nos com o tribunal, porque na verdade a prioridade somos nós e se nós engajarmos com o tribunal, os nossos dirigentes não irão para o tribunal e trataremos das questões localmente. Ou mesmo se estiveram lá, se houver o mecanismo de engajamento, existe toda uma serie de garantias no tribunal que faz com que os processos sejam transparentes. A resistência não é para mim a solução. O engajamento é a opção …
— Entrevista continua na próxima edição.
odemocratagb
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