Território costeiro, situado na África Ocidental e com uma superfície de pouco mais de 36 mil quilómetros quadrados, a Guiné-Bissau tem tudo para dar certo. Recursos naturais, população jovem, tradições culturais e criatividade reconhecidas. O que tem faltado? Aparentemente, lideranças à altura. Nas ruas de Bissau, encontrámos [novas] vozes que nos falam de um país possível.
De acordo com o recenseamento de 2009, a Guiné-Bissau tem perto de 1,5 milhões de habitantes, dos quais mais de metade (51,6%) são mulheres. A maioria (50,2%) é jovem, com idades compreendidas entre os 15 e os 35 anos. O país possui uma área florestal de cerca de dois milhões de hectares, o que corresponde a 71 % do território nacional. A costa marítima estende-se ao longo de 350 km.
Da capital ao interior, das cidades às tabancas, as vivências de séculos traduzem-se num património material e imaterial rico e diversificado. A Guiné-Bissau parece ter tudo a seu favor e mesmo assim contínua em estado de espera, numa encruzilhada sem fim à vista.
As estatísticas não enganam. Nos primeiros anos do novo século, entre 2000 e 2010, a taxa média anual de crescimento, no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), foi de 0,9 por cento, menos de metade da média da África Subsaariana, fixada nos 2,1. No período 2010-2015, o valor foi ainda mais baixo, ao não ir além dos 0,67 por cento. O país de Amílcar Cabral ocupa umas das últimas posições no ranking elaborado pelas Nações Unidas: 178º em 188 países, no relatório de 2016, com dados referentes a 2015.
A história da Guiné-Bissau pós-independência é feita de desentendimentos. Desde a declaração unilateral, a 24 de Setembro de 1973, o país já mudou 25 vezes de Primeiro-Ministro e dezassete de Presidente. As eleições de 2015, depois de um período de transição, na sequência do golpe de 2012, fizeram renascer a esperança na estabilização política. As expectativas goraram-se um ano depois, quando o actual Chefe de Estado, José Mário Vaz, demitiu o então líder do Governo, presidente do PAIGC, e vencedor das legislativas, Domingos Simões Pereira. Desde então, já foram nomeados quatro primeiros-ministros, o último dos quais Umaro Embaló que, sem programa aprovado, mantém-se em funções por vontade presidencial, mesmo que à revelia do acordo de Conacri (ver caixa).
O afunilamento do debate em torno das mesmas figuras, a repetição de enredos e a aparente falta de vontade política para construir “consensos” é terreno fértil, do qual brota uma nova geração de activistas, protagonistas de um novo pensamento, comprometidos com o que consideram ser urgente no presente e prioritário para o futuro. É uma Guiné política, não necessariamente partidária, que emerge e apresenta uma outra visão de país.
Muitos desses activistas estão reunidos no Movimento Acção Cidadã, um espaço de cidadania e intervenção cívica. É o caso de Dautarin Monteiro da Costa, 35 anos, sociólogo. Guineense, nascido na Rússia, licenciado e mestre em sociologia, pelo Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, Dautarin tem concentrado a sua intervenção social nos domínios da educação, juventude e cultura. Quando olha para a actual paisagem institucional, não gosta do que vê.
“Estamos a viver momentos muito perigosos. O que está a acontecer na Guiné-Bissau, é importante que ninguém tenha ilusões relativamente a isso, é a destruição das instituições. Pela primeira vez, observa-se uma pessoa com imenso poder - falo, naturalmente, do Presidente da República - em que a consequência do uso do poder tem sido a destruição das instituições. Não tem que ser directamente ele a destruir, mas cria o ambiente necessário para essa destruição”, avisa, preocupado.
“Como em qualquer organização, nós olhamos sempre para a liderança, a liderança é que dá o ambiente, a liderança é que configura relações, a liderança é que dá o mote e esta liderança não dá mote nenhum, não dá orientação nenhuma. Esta liderança só nos está a mostrar o caminho do abismo”, reforça.
Dautarin recebe-nos em casa, a alguns quilómetros do centro. O encontro, inicialmente agendado para Bissau velha, coincidiu com o regresso de José Mário Vaz ao país, depois de um périplo regional, e é reagendado em cima da hora. A principal avenida da cidade está cortada ao trânsito, num dos sentidos, à espera da caravana presidencial.
“Eu acho que este presidente brincou com um momento histórico. Não teve a noção do que é que se lhe pedia. Nós saímos de um período conturbado e ele teve todas as condições para nos tirar desta situação. Tivemos umas eleições espectaculares, tínhamos um primeiro-ministro que tinha um projecto para o país. Não houve fraudes eleitorais, os líderes dos órgãos eram legítimos, havia uma dinâmica a nível internacional disposta a promover as mudanças que nós queríamos e ele [Mário Vaz] defrauda tudo isto”, lamenta o sociólogo, que coloca o actual capital político do Presidente na categoria “ilusões”.
A Guiné-Bissau não é só a sua capital, mas fora de Bissau, onde as comunidades preservam formas tradicionais de organização social, o Estado quase não existe. É na cidade grande que se discute o futuro do país, mesmo que essas discussões pouco alterem o dia-a-dia da cidade e das suas gentes, ocupadas que estão na luta diária pela sobrevivência.
Miguel de Barros nasceu em Bissau, em 1980, e é uma das vozes mais internacionais da sua geração. Formado em sociologia, dedica-se à investigação e ao trabalho comunitário. Dirige a principal organização não-governamental guineense, Tiniguena, onde nos encontramos.
“Nós temos um Estado altamente frágil, quer do ponto de vista do pensamento sobre a ideia de Estado, quer do ponto de vista do funcionamento das instituições, da capacidade dos actores políticos em utilizarem essas instituições, utilizarem esse ideal de Estado para depois prestarem serviços às populações”, diagnostica.
O activista analisa a história do país, desde o Reino de Gabu até aos nossos dias, e é nela que encontra uma explicação para a instabilidade endémica.
“Nós temos um Estado que foi forjado na base de lutas cíclicas”, diz.
A diversidade étnica do país também ajudará a perceber o contexto actual. As etnias Balanta (24,7%) e Fula (25,4%) são maioritárias mas o país é igualmente formado por mandingas (13,7%), manjacos (9,3%) e papéis (9%).
“Nós precisamos, neste momento, de um Estado completamente diferente. Precisamos de um Estado em pleno funcionamento, dentro daquilo que são as suas responsabilidades. Com actores mais qualificados e mais aptos, de forma a apostarem nos serviços que o Estado deve garantir”, prescreve.
A reforma das instituições e a identificação de um novo modelo de organização política torna-se, aos olhos de Miguel de Barros, uma necessidade que não se reduz à discussão sobre o sistema constitucional.
“A reforma do sistema passa por olharmos para como é que se deve refundar o sistema político-partidário, os partidos políticos. Como é que se deve refundar, por exemplo, aquilo que é hoje o Estatuto dos Deputados? A funcionalidade da Assembleia da República? Como é que se deve pensar o papel da Presidência da República? Como é que se deve reestruturar o sistema judicial? Como é que devemos pensar o sistema eleitoral?”, questiona.
Repensar o Estado é, para o investigador guineense, uma necessidade e uma urgência com prazo marcado: meia década. “Se a Guiné-Bissau não conseguir fazer isso nos próximos cinco anos, nós corremos o risco de cair numa situação de irrelevância enquanto Estado”, abrevia Miguel de Barros, confiante no valor das novas gerações.
“Existindo, neste momento, uma massa critica mais qualificada e mais comprometida, é um repto que os guineenses devem aceitar e assumir. É algo que não deve ser da única e exclusiva responsabilidade dos actores políticos”, desafia.
Dautarin da Costa subscreve. Habituado ao dia-a-dia nos bairros periféricos, conhecedor do país real, Dautarin também quer uma mudança assumida por todos.
“O que os jovens guineenses andam a fazer ultimamente é apropriarem-se do seu direito de responsabilizarem os políticos por aquilo que devem fazer. Estamos a assistir, de forma gradual, a uma apropriação da tutela da mudança. Eu tenho esperança que isso possa ser o elemento propulsor da mudança no país”, ambiciona.
Saúde e Educação
A instabilidade política traduz-se em números e atrasa o desenvolvimento. A Guiné-Bissau é um dos países mais pobres do mundo. Quase sete em cada dez guineenses são pobres e vivem com menos de dois dólares por dia. Perto de três em cada dez sobrevive com menos de um dólar por dia, encontrando-se numa situação de pobreza extrema. Em cada mil crianças nascidas, mais de noventa (92,5, segundo os dados do IDH de 2015) morrerão antes de completar cinco anos – em Cabo Verde, o número fixa-se nos 24,5 por mil nascimentos.
O indicador – um de tantos, igualmente desfavoráveis – ajuda a traçar o perfil de um sistema frágil, com pouca capacidade de resposta, incapaz de satisfazer as necessidades básicas da população no que ao acesso a cuidados de saúde diz respeito.
Aissatu Djalo é uma mulher ocupada. Aos 25 anos, divide os dias entre o curso de medicina – que está a terminar, numa universidade guineense – e um sem número de actividades associativas. É presidente da Rede Nacional de Jovens Mulheres Líderes e vice-presidente do Conselho Nacional da Juventude. Interessam-lhe, em particular e sem surpresa, as questões da saúde e é nessa área que centra uma grande parte da sua intervenção social. Faltam meios: técnicos, humanos e financeiros.
“Aqui em Bissau os centros de saúde têm mais enfermeiros e fora de Bissau há poucos centros, as pessoas não têm acesso a cuidados de saúde”, exemplifica.
Aissatu tem partilhado os seus conhecimentos com as comunidades espalhadas por todo o país. Aposta na prevenção e por isso leva às tabancas noções básicas de saúde sexual e reprodutiva. Considera “importante trabalhar a questão da informação, porque ainda existem factores de risco e vulnerabilidade, principalmente nas jovens raparigas”.
Se a situação fora da capital é dramática, em Bissau está longe de ser satisfatória. No Hospital Simão Mendes, o maior do país, falta quase tudo. Não há medicamentos ou consumíveis médicos, não há lençóis para as camas ou comida para os pacientes. As rupturas não são permanentes, mas acontecem com frequência. A comunidade internacional apoia o sistema de saúde, mas as ajudas são poucas. Equipamentos novos são mantidos por estrear porque faltam componentes ou não existem técnicos capacitados.
“A situação de instabilidade faz com que não se trate daquilo que é importante no momento, aquilo que é urgente”, diagnostica a futura médica.
Da saúde à educação, esta é outra área que faz o país destacar-se pela negativa nos rankings internacionais. Com uma taxa de alfabetização de 59,9 por cento, o Estado tem sido incapaz de garantir acesso universal à escolarização. Menos de quatro em cada dez professores tem formação adequada.
Especialista em comunicação, activista, empenhada na defesa dos direitos cívicos e na equidade de género, Elizabeth Myrian, 37 anos, faz depender o futuro da aposta que for feita na educação. Defende uma nova escola, para uma cidadania mais consciente.
“A definição de futuro tem estado a ser condicionada por causa do tipo de educação que está a ser dada aos jovens. O mesmo liceu que eu frequentei há 20 anos atrás é o liceu que os alunos de hoje estão a ter. Daqui a pouco vamos ter jovens a sair do liceu como analfabetos funcionais. Jovens que vão poder ler e não compreender”, alerta.
“Temos que construir mais escolas, mais liceus. Temos que apostar no ensino secundário e assim poderemos ter uma camada jovem crítica, que possa analisar os factos e tomar decisões”, deseja.
Miguel de Barros concorda. O sociólogo quer uma educação que construa uma auto-estima nacional, enquanto elemento unificador. Conhecer o país, a sua história, as suas tradições.
“Como é que se faz o ensino da cultura nas nossas escolas? a literatura nacional é estudada? Os nossos autores, a música, o artesanato?”, pergunta.
Enquanto isso, nas ruas de Bissau a vida corre ao ritmo de sempre. Os moços a vender saldo, os toca-toca e os táxis a atrapalhar o trânsito, com aquela condução mais ou menos sem regras. Bandim é o melhor sítio para comprar tudo e qualquer coisa. Os guineenses estão habituados à incerteza que lhes é oferecida pelos protagonistas de sempre, mas há uma nova geração que, cansada de esperar, exige mudanças.
“É importante que os políticos comecem a falar deste país que está a acontecer”, alerta Dautarin da Costa. “Os protagonistas continuam os mesmos, os eleitores começam a mudar”, resume Elizabeth.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 807 de 17 de Maio de 2017.
0 comentários:
Enviar um comentário