Entrevista a Manecas dos Santos, comandante histórico do PAIGC, na sua casa de Bissau
Caboverdiano, Manecas dos Santos, 74
anos, juntou-se ainda estudante à luta de libertação liderada por
Amílcar Cabral, o fundador do Partido Africano para a Independência da
Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Cercou Salgueiro Maia em Guidage, batalha
decisiva da guerra na Guiné. "Não se esqueça de que o 25 de Abril também
é nosso", sublinha. "O movimento dos capitães nasceu cá. Foi onde o
exército português foi confrontado com enormes dificuldades." Nesta
entrevista, a 27 de Abril na sua casa de Bissau, diz que a PIDE é
responsável pela morte de Cabral, que o actual presidente é "um
traidor", e que a Guiné-Bissau espera por um golpe "bom", para que haja
eleições rapidamente. Há dois anos que o parlamento não funciona.
Como foi o cerco de Guidage?
Eu
e o Lúcio Soares comandávamos toda a Frente Norte. Somos os dois únicos
comandantes principais que ainda estão vivos, aqui na Guiné. E ele
tinha saído para uma formação, eu era o número 2, ia comandar. Nessa
altura decide-se fazer o ataque a Guilege, uma pedra no sapato que
tínhamos na Frente Sul, precisávamos de a libertar. Para impedir a
concentração das tropas especiais portuguesas em Guilege, fizemos
ataques a Guidage, criando uma situação extremamente má para o exército
colonial. E as tropas especiais portuguesas acabaram por se concentrar
em Guidage em vez de Guilege. De facto, combateu-se muito mais em
Guidage do que em Guilege.
Impressiona a descrição que Salgueiro Maia faz desses 50 dias de cerco.
A
situação deteriorou-se muito para o exército colonial. Tiveram de
tentar intervir. Houve uma altura em que mandaram um batalhão de
comandos inteirinho mais uma companhia de paraquedistas tentar
desbloquear Guidage e não conseguiram. Nós estávamos em vantagem,
obviamente.
Quantos homens estavam lá?
Eu tinha entre 800 e 900.
Com que armas?
Tudo
o que pode imaginar. Sobretudo Kalashnikovs, a arma de infantaria por
excelência. RPG"s, canhões ligeiros. Uma arma pesada, o Morteiro 120.
Era uma combinação disso tudo com o cerco. Cortar a estrada que ligava
Guidage a Binta, Binta-Farim, cordão umbilical da Guiné, não deixar
passar nada. A situação tornou-se... Eu, francamente, admiro o Salgueiro
Maia. Ele aguentou o inaguentável. Sofreu muito lá dentro.
O senhor leu o livro com as descrições dele.
Hum, hum.
Foi assim como ele conta?
[Acena com a cabeça].
E vocês tinham o apoio da população.
Naquela
zona praticamente não havia população. Guidage está mesmo em cima da
fronteira com o Senegal. É óbvio que utilizávamos o território senegalês
também. Foram combates extremamente renhidos.
Há
uns três anos fui a Lisboa assistir ao lançamento de um livro, "A
Última Missão", de um coronel, na altura capitão-paraquedista. Ele
combateu em Guidage, num dos combates perdeu vários homens e não
conseguiu levar os restos mortais, teve de os enterrar no local. Então, a
última missão é que ele veio cá muitos anos depois do fim da guerra
retirar os restos desses soldados para os levar.
E encontrou-os?
Encontrou. Ajudámo-lo em tudo o que pudemos.
Ele contactou-vos para pedir ajuda?
Sim.
[Levanta-se, sai da sala, volta com a "Última Missão", de José de Moura Calheiros]
Isto é um livro que vale a pena ler.
Ele estava com Salgueiro Maia?
Não.
Era comandante de uma companhia que foi chamada para tentar desbloquear
o Salgueiro Maia. Não conseguiram. Encontrei-o já várias vezes em
Lisboa.
Salgueiro Maia aprendeu a respeitar quem combatia. A respeitar a causa que os levava a combater.
E os homens que tinha à frente.
Vocês também os respeitavam?
[pausa]
Pode parecer um endeusamento de Cabral, não se trata disso. Mas Cabral
nos anos 1960, quando uma boa parte dos movimentos de libertação era um
bocado racista também, foi capaz de dizer: nós não estamos a lutar
contra os portugueses, estamos a lutar contra um sistema, que é o
colonialismo português. Eu diria que fomos educados nisso. A tal ponto
que 45 dias depois do 25 de Abril os soldados do PAIGC e do exército
português já estavam a beber juntos.
Onde?
Em
Farim, por exemplo. E menos de um mês depois já nos tínhamos encontrado
na mata. Encontrámo-nos e decidimos que não valia a pena estarmos aos
tiros, mais. Na Guiné o cessar-fogo foi negociado muito depois de haver
um cessar-fogo real, sem violações.
O cessar-fogo real acontece quando?
Acho que um mês depois do 25 de Abril não houve mais combates.
E entre a declaração de Independência a 24 de Setembro de 1973 e o 25 de Abril de 1974 o que é que aconteceu?
Foi
a parte mais violenta da guerra. Melhor, entre Março de 1973 até ao fim
da guerra. Conseguimos armas anti-aéreas eficazes. A aviação deixou de
contar.
Armas de onde?
Russas.
Portáteis, atirava-se do ombro, uma arma extremamente eficiente para
aviões a relativamente baixa altitude. E, ao darmos cabo da supremacia
aérea do exército colonial, eles ficaram em maus lençóis. Tenho no meu
computador a acta da última reunião do Spínola com o seu estado-maior
aqui em Bissau, em Maio de 1973. Dá para avaliar a desorientação que se
tinha apoderado de Spínola e do seu exército.
Spínola tinha perfeita consciência de que a guerra não estava nada ganha, como se dizia em Lisboa.
Tinha
consciência de que não podia ganhar. Podiam aguentar-se ainda muitos
anos, à custa de sacrifícios enormes e de perdas crescentes. Mas era
óbvio que a vitória não estava no horizonte. Nessa altura começámos a
usar carros blindados.
Também russos?
Todas
as armas que tínhamos eram de origem russa. Muito provavelmente em
breve iríamos usar aviões, já tínhamos pilotos em formação na União
Soviética. Há uma entrevista que na altura deu o major Monge, agora
general, em que ele diz que não era o PAIGC que estava a construir
defesas anti-aéreas, era o exército português. Efectivamente, o exército
colonial tinha muito mais homens do que nós...
Quantos tinha o PAIGC?
Operacionais,
à volta de 7000. O exército colonial tinha muita tropa a ocupar
quartéis mas que não saía, e tinha muito menos tropas que fazia
intervenções, comandos, fuzileiros e paraquedistas. De forma que, em
termos de gente operacional, nós tínhamos muito mais. Esses 7000 eram
todos operacionais. Bons soldados. Não só porque eram formados mas
também porque tinham sete, oito anos de experiência de guerra. Um
soldado desses é muito difícil de matar.
Os soldados portugueses ficavam aqui menos tempo.
Os
desgraçados vinham e ao fim de dois anos, quando começavam a estar
aptos para o combate, iam-se embora. Havia uma diferença de qualidade
enorme. Não porque o nosso soldado fosse melhor do que o o soldado
português em termos anímicos ou outros. É uma questão de experiência.
E de estarem motivadíssimos para uma causa, não?
Também. Isso na guerra conta muito.
Esses 7000 tinham sido treinados fora?
Eram todos daqui. Todos guineenses, e alguns caboverdianos, uma percentagem pequena.
Havia mulheres?
Havia.
Mas em unidades militares não. Estavam mais nas forças de auto-defesa.
Milícias, como lhes chamávamos. Houve algumas mulheres, uma delas ainda
está viva, vi-a há dias. Era enfermeira numa unidade, ia aos combates e,
quando havia um ferido retirava-o da frente. Uma mulher extremamente
corajosa: Cadi.
Quando se dá a morte de Cabral, o senhor está onde?
Na Rússia. Melhor, na Crimeia. A preparar a questão dos mísseis anti-aéreos.
Fala russo?
Falava um bocadinho. Ainda entendo muita coisa.
Como lhe chegou a notícia da morte de Cabral?
Pela
rádio, pela BBC. Fui ter com o comandante russo e pedi-lhe que
confirmasse. Ele confirmou uma hora depois. Nessa escola [da Crimeia]
encontrávamos formandos do PAIGC, da Frelimo, do MPLA, do ANC. Éramos
200 [do PAIGC] nessa altura. Reuni-os no anfiteatro e dei a notícia. É
das cenas mais pungentes a que assisti. Ver soldados que enfrentavam a
morte todos os dias a chorar, porque Cabral tinha morrido.
Porque é que Cabral foi morto?
[sorriso]
Isso é uma pergunta que toda a gente faz e para a qual ninguém tem
resposta. Cada um vem com as suas elocubrações, mas Cabral foi morto
pelo colonialismo, isso não tenha dúvidas. Por pessoa interposta ou não.
O braço que atirou em Cabral sabemos quem foi, agora quem mandou... Não
tenho dúvidas de que foi o colonialismo. E a PIDE em particular.
Porque é que isso não é um facto assente?
Porque
não pode ser. Cometeu-se um erro diabólico, que foi ter-se liquidado a
maior parte da gente que participou. Sem termos declarações fidedignas
deles. A partir daí, torna-se tudo muito nebuloso. A PIDE e o regime
colonial terão feito um mau cálculo, que matando Cabral tudo se
desmoronava. É falso, não se desmoronou, pelo contrário. Nós perdemos um
líder extraordinário. E Portugal também perdeu um líder que podia ter
dado uma contribuição decisiva para a descolonização. Perdemos todos.
Inclusive quem mandou matar.
Cabral teria feito uma diferença decisiva na descolonização?
Penso que sim.
O que é que ele tinha?
Antes
de mais a inteligência. Era um génio. Tudo quanto fez, fez bem. Cursou
agronomia, foi um excelente agrónomo, ganhou rios de dinheiro a fazer
consultoria, depois foi um excelente político, um excelente diplomata,
um excelente chefe de guerrilha. Releio muitas vezes o que escreveu e
sempre descubro algo.
Porque é que a Guiné é o primeiro país a declarar independência?
Era
na Guiné que a luta de libertação se tinha desenvolvido mais. Tínhamos
aquele homem, Cabral. E não foi o PAIGC que proclamou o estado. Cabral
sempre quis fazer as coisas com alto grau de legitimidade. O que ele
faz? Eleições nas regiões libertadas. Elege os conselheiros regionais e
deputados, constitui a Assembleia, e é a Assembleia, os representantes
do povo que proclamam a existência do Estado. Não é o PAIGC. Uma
démarche única nos movimentos de libertação nacional. Mesmo depois da
independência: você olha para a declaração de independência de Angola e
foi o MPLA que a proclamou.
Quando é que o senhor conhece Salgueiro Maia?
Pessoalmente,
em Portugal, depois da independência. Provavelmente em 1975.
Encontrei-me com outros, Carlos Fabião, já aqui na Guiné, Hugo dos
Santos, Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Lourenço. As pessoas não
imaginam que assim fosse, mas nós tínhamos relações cordiais.
Como se partilhassem uma coisa.
Partilhamos uma história, de facto. Melhor ou pior, de um lado ou de outro.
Encontrou Salgueiro Maia em que circunstâncias?
Não me lembro bem, penso que terá sido um encontro com outras pessoas. Um encontro fortuito.
Não tem memória de uma conversa longa com ele?
Não.
Não conversaram sobre o que aconteceu em Guidage?
Não.
Eu não quis tomar a iniciativa. E muito provavelmente ele não sabia que
eu estava do outro lado. Penso que era um homem de grande verticalidade
e grande coragem. Isso, ele demonstrou na prática. E a gente respeita
isso, sempre. Nós, que fomos combatentes, respeitamos o adversário
corajoso. Tínhamos um grande respeito pelo Carlos Fabião, um operacional
de grande nível. Para ver a que ponto chegam as coisas: o Fabião é que
apadrinha a minha entrada para a maçonaria. Não se alongue muito nisto
[risos], como deve imaginar. Mas dá-lhe uma ideia do relacionamento.
O que faz hoje no PAIGC?
Tenho
uma voz que foi sempre independente, não me coíbo de dizer o que penso.
As pessoas respeitam isso. Sou membro do bureau político.
Portanto é ouvido para as decisões. Como olha para este momento, agora?
Não
estou pessimista em relação ao futuro. A Guiné tem coisas boas na sua
história, quando estabilizar vai tirar proveito delas. Mudou muito de
1974 para aqui, Mesmo que a gente não queira ver. Em 1974, tinha 97 ou
98% de analfabetos. Agora tem 40%. É uma mudança significativa. Para
você avaliar os recursos humanos que tínhamos, em 1978 nomearam-me para
ministro dos Transportes: eu era a única pessoa em todo o ministério com
formação universitária.
Havia 14 licenciados quando foi o 25 de Abril?
Não sei quantos, mas poucos.
E o primeiro liceu foi em...
1958. E com acesso muito limitado.
Ou seja não só os licenciados não chegariam a duas dezenas como as pessoas com ensino secundário eram apenas algumas centenas.
Poucas centenas.
Mas há grande angústia dos jovens agora em relação à promessa que não veem cumprida.
Compreendo. Não há jovem que não queira progredir rapidamente. É salutar.
Como descreveria a actual situação política?
O
presidente [José Mário Vaz, conhecido como Jomav] utiliza a
Constituição a seu bel prazer. Quando demite o Domingos Simões Pereira -
o melhor primeiro-ministro que a Guiné-Bissau já teve -, a única razão
que encontrou foi incompatibilidade. Ora, o primeiro-ministro não tem de
ser amigo do presidente. Isto não é um regime presidencialista. Depois
vem com acusações de corrupção, tudo mentira. Aliás, o Domingos pediu
uma comissão de inquérito, que trabalhou, já tem os resultados. Este
presidente resolveu assenhorear-se do país. Quer ser primeiro-ministro e
não presidente. Quer governar. Donde os problemas que teve com os dois
governos do PAIGC. Nenhum aceitou isso.
Como se sai desta situação?
Difícil
de dizer. Não acredito muito que se vão cumprir os acordos de Conacri
[assinados em 2016 para tentar desbloquear o impasse político], não são
fáceis de cumprir. Não acredito também que o presidente vá recuar.
Quando acha realista pensar em eleições?
Se
cumprirmos a Constituição, devem realizar-se em Outubro-Novembro de
2018. É claro que há sempre hipótese de haver eleições antecipadas, mas o
presidente não quer porque vai perder. Ele tem estado a manobrar no
sentido de dominar o PAIGC. Não conseguiu nem vai conseguir.
Há uma pressão internacional para haver eleições na primavera do próximo ano.
Se
houver, estamos disponíveis. Mas estou a falar do que diz a
Constituição. E como é o presidente que marca as eleições, e ele não
quer, seguramente não as vai marcar para a primavera.
Então a Guiné vai ficar um ano e meio...
Penso que antes disso há um golpe de estado [pausa]. Esta situação está-se a tornar insustentável para a maioria.
Estamos na iminência de um golpe de estado?
Sim.
Veja, o primeiro-ministro entra na questão tribal e religiosa, o
presidente acompanha de certa forma... É o pior que se pode fazer.
Isso é uma questão?
Transformaram
isso numa questão. Quando o primeiro-ministro vem dizer que é fula, e
agora os fulas é que têm de mandar, os balantas ficam todos com as unhas
de fora, e eles são a maioria do exército. É um bocado simplista, mas é
isso. No gabinete do primeiro-ministro actualmente só há fulas. Isso é
uma coisa que nunca aconteceu na Guiné. É uma coisa, diria mesmo,
contranatura, porque a miscigenação interétnica neste pastyssau no
bolso. cial do poder para ele. O tipo estum golpe de estadom mas foi um
golpe de estado bom. Serviua smociedade portuís é enorme, então em
Bissau é quase 100 por cento. É difícil prever conflitos de ordem tribal
porque as etnias estão todas misturadas.
Há sinais concretos desse mal estar?
Há. Inclusive nas Forças Armadas.
Da parte dos balantas nas Forças Armadas?
Não
só. As Forças Armadas têm bons oficiais e eles eststyssau no bolso.
cial do poder para ele. O tipo estum golpe de estadom mas foi um golpe
de estado bom. Serviua smociedade portuão conscientes desta situação.
Para dizer a verdade, não acredito que haja um golpe para os militares
tomarem o poder. Estamos na iminência de haver um golpe de estado, e
eventualmente violento, para tirar o presidente, o primeiro-ministro, e
provocar eleições rapidamente. Não creio que os militares façam um golpe
para se apoderarem do poder.
Diria que esse golpe de estado é necessário?
Um
pouco como o 25 de Abril [ri]. O 25 de Abril foi um golpe de estado mas
foi um golpe de estado bom. Serviu a sociedade portuguesa.
Está a dizer que estamos na iminência de um golpe de estado bom.
Pode ser.
Esse golpe contaria com o apoio da maioria da população?
Seguramente.
E quem podia assumir o poder até às eleições?
O presidente da Assembleia. É o que está na Constituição.
O presidente não tem noção disso?
Deve
ter, mas está perfeitamente obcecado pelo poder. Pelo poder e pelo
dinheiro, que para ele é complemento essencial do poder. O tipo está a
meter a Guiné-Bissau no bolso. Antes de ele ser eleito, eu já tinha dito
aos camaradas do partido: esse tipo vai nos criar grandes dores de
cabeça. Ele é um traidor. Claro que o presidente sabe disso e não me
pode ver nem com molho de tomate.
Este
comandante histórico do PAIGC era estudante de engenharia quando
Amílcar Cabral lhe disse que precisava mais de soldados do que de
engenheiros.
Como se juntou ao PAIGC?
O
PAIGC mandou um dos seus militantes, Abílio Duarte, que depois veio a
ser presidente da Assembleia, organizar o partido em Cabo Verde. Ele foi
estudar no liceu onde eu estava, em São Vicente. Era um bocado fraco em
matemática, matemática sempre foi o meu forte. e eu dava-lhe uma ajuda.
Então, é da boca do Abílio que ouço as primeiras coisas sobre
nacionalismo, colonialismo, etc.
Conte-me um pouco sobre a sua família.
Sou de uma família de classe média. O meu pai era comandante da marinha mercante portuguesa. Caboverdiano.
No Mindelo?
Sim.
Tirou o curso de piloto na escola náutica do Mindelo, bem antiga.
Depois fez o curso de comandante em Portugal. Tenho um tio que também
era comandante.
E a sua mãe?
Caboverdiana
de São Vicente com pais de São Nicolau. Assim como o meu pai era de São
Vicente mas o pai da Boavista. E o meu avô, pai do meu pai, esteve
preso em Portugal por ser republicano no tempo da monarquia. Foi preso
em Cabo Verde e levado para Lisboa. Por ser republicano e nativista. O
advogado de defesa dele foi o Trindade Coelho [risos]. Eu não sabia, o
meu irmão é que foi à Torre do Tombo investigar.
Portanto, uma família com consciência política antiga.
Quando
saio de Lisboa em fins de 1964 [a caminho da luta do PAIGC], o meu pai é
que me foi levar à estação. E ele sabia ao que eu vinha. Não se opôs de
maneira nenhuma. Nem a minha mãe, o que ainda é mais estranho [sorri].
Voltando ao liceu no Mindelo...
Terminei
e matriculei-me na Faculdade de Ciências com 16 anos. Vou para Lisboa,
para um ambiente estudantil de esquerda. O meu irmão já lá estava, a
estudar engenharia também. As nossas leituras eram "Os Subterrâneos da
Liberdade", de Jorge Amado, coisas desse calibre.
Em
1962 fundámos um comité do partido em Lisboa. E o nosso contacto era um
estudante que estava a fazer um doutoramento em matemáticas na
Sorbonne. Era um elo entre nós e o secretariado [do PAIGC] em Conacri,
veio a ser professor catedrático em Portugal, chamava-se António
Saint-Aubin, neto de um inglês que passou por Cabo Verde e ficou. Apesar
de a avó ser quase preta, ele era branco, louro, de olhos azuis -
acontece muito em Cabo Verde. Então, através dele contactávamos Conacri,
e as instruções que recebemos é que aqueles que terminassem os estudos e
não tivessem problemas de serviço militar que regressassem ao país de
origem. Aqueles que tivessem problemas de serviço militar que saíssem de
Lisboa. Quando chego a Paris em 1964, [Amílcar] Cabral passa por lá.
Já o tinha encontrado?
Não.
Como foi?
Bom, era o encontro entre um jovem estudante e o líder confirmado [ri].
Uma figura já lendária para si.
Não
propriamente lendária mas era uma figura que considerávamos muito. E eu
em particular. É por causa dele que venho parar às Forças Armadas. Eu
estava quase a acabar engenharia e Cabral diz-me que precisa mais de
soldados do que de engenheiros. De facto, com o desenvolvimento da luta
armada aqui na Guiné precisava de gente com alguma capacidade técnica.
Então, fomos a Cuba...
De Paris para Cuba?
Paris-Algiers
[Argel], Algiers-Cuba. Havia uma velha ideia de desembarcar em Cabo
Verde, ainda bem que não levámos isso a cabo, se não era suicídio.
Cabral desistiu da ideia. Viemos todos, um grupo de 30 e tal
caboverdianos, para a Guiné-Conacri.
Onde já tinha estado?
Nunca.
Viemos já integrados em unidades do PAIGC. E com os vários episódios da
luta as pessoas foram divergindo, alguns para a esquerda, outros para a
direita. Fiz uma carreira militar, entre aspas, até 1974.
Em Bissau
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